Ler o mundo em um “novo normal”?

– Luciene Aparecida Campos Viríssimo –

Luciene em frente ao centro comunitário da comunidade quilombola Ausente

UM POUCO DA MINHA REALIDADE

Eu, Luciene, moro na comunidade quilombola de Ausente, município de Serro. Estou morando com minha mãe, meu padrasto e minha filha de 4 anos. Meu companheiro só vem uma vez a cada mês. Até o último dia do mês de fevereiro deste ano ajudava a cuidar da minha tia que estava acamada devido um AVC que havia sofrido. Ela era totalmente dependente de nós que cuidávamos dela, desde alimentação ate trocar as fraldas.

Com a pandemia minha mãe teve de ficar mais tempo em casa. Antes, por ser presidente da associação comunitária, ela saia muito e geralmente tinha muitas reuniões. A partir do isolamento que a pandemia trouxe o tempo dela passou a ser ocupado quase todo com plantações, roça e hortas, além de participar de projetos de comércio de produtos de agricultura familiar. Minha mãe cuida da minha filha para eu estudar e trabalhar, eu trabalho em casas de famílias com faxinas alguns dias da semana. Meu padrasto fica em casa cuidando das coisinhas dele, já que não pode trabalhar em serviços pesados por motivos de saúde.

Além de eu estudar e trabalhar, também tenho que dividir meu tempo com minha filha, que começou a estudar esse ano com o famoso PET. Para ela, que começou a escola agora, essa dinâmica acaba exigindo uma atenção maior, até que ela consiga acompanhar tudo. Além disso, todas atividades que ela está fazendo estão sendo passadas pelo whatsapp do mesmo celular que utilizo para assistir minhas aulas e ler textos.

A pandemia mudou muito a rotina da minha comunidade e da minha família, já que não temos muitas formas de distração igual antes. Sem reuniões, festas e viagens, as formas de distrair ficaram por conta da televisão. Nesse tempo de pandemia foi criado também na minha comunidade um coletivo de agroecologia na qual e voltado para a comercialização de produtos orgânicos, em que eu participo como articuladora e apoiadora entre agricultoras e clientes, além de fazer parte do financeiro desse grupo que tem me rendido muito aprendizado. O difícil com esse tempo vem a ser o acesso à internet, já que só uso dados móveis. Isso porque na minha comunidade ainda não conseguimos colocar uma internet boa, sendo a única que funciona e a via satélite, mas não atende totalmente nossas necessidades. Mas sigamos na esperança que tudo passe logo para voltarmos as nossas antigas rotinas com muito aprendizado.

ESTUDAR EM TEMPOS DE PANDEMIA

Com o início da pandemia muitos desafios foram encontrados, como o ensino remoto, estudar a distância. O que fazer? Como fazer? Foram muitos os medos de não dar conta, pois as dificuldades eram visíveis logo de cara. A internet não ajuda muito e, como onde moro um dos melhores acessos seriam via satélite, a qual é uma internet muito cara e nem sempre resolve, optei pelos dados moveis mesmo. Pago um plano mais caro que, porém, me atende bem. O sinal nem sempre é bom, mas dá para seguir em frente.

Essa rotina de estudar de forma remota requer muito comprometimento e disciplina, já que, muitas vezes esquecemos dos horários das aulas e até mesmo das atividades propostas, porque colocamos outras atividades do dia a dia a frente. Como tradicionalmente estamos e tempo todo em Diamantina na época do Tempo Universidade só para o estudo, não estando lá por conta do contexto, à vezes dificulta muito.

Nos semestres passados estávamos todos juntos, fazíamos grupos para estudar e discutir textos das disciplinas, que eram para ser lidos e compreendidos. No entanto, com o isolamento social por causa da pandemia, a forma que temos agora para discutir os textos com alguns colegas é através do Whatsapp. Discutir os textos com os colegas é uma das formas de entendermos ele melhor, pois um vai tirando as dúvidas do outro. Atualmente a teleconferência é nossa sala de aula, onde nem sempre vemos os colegas, ou os ouvimos, sendo uma forma de matar a saudade e de estarmos juntos.

Nas atividades de Prática de Ensino que encerraram o semestre anterior a esse no qual escrevo, houve uma atividade de colocação em comum em que conhecemos um pouco sobre o gênero webinário, palavra essa que quase não se ouvia falar, e que hoje está sendo muito usada. Além desse exemplo, há muitas outras mudanças em prática até o momento. Tive de aprender a usar alguns aplicativos novos, por exemplo. O Google Meet eu já usava para algumas reuniões, mas com as aulas, aprendi melhor a usá-lo. Google Sala de Aula eu já conhecia, mas ainda não sei dominá-lo. O e-mail institucional foi também uma ferramenta exigida. A partir de quando o conheci já me adaptei e hoje em dia tenho até mais facilidade de lidar com ele. Com a disciplina de Estudos de Letramento, conheci melhor o Moodle, já que usava apenas para enviar trabalhos TC e TITC e ver textos propostos. Atualmente aprendi a usar outras funções que eu não conhecia. Nesse tempo não aprendi a dominar o podcast, gênero usado nas atividades de Prática de Ensino, mas espero aprender logo.

Em resumo, os docentes da universidade, assim como os colegas, têm dado muito apoio uns para os outros, sendo um apoio muito importante para que ninguém fique prejudicado.

REFLETINDO SOBRE O PROCESSO DE APRENDIZAGEM

Com a chegada da pandemia no Brasil, muitas coisas precisaram ser readaptadas para um “novo normal”, o qual nem todos conseguem acompanhar. Juntamente a isso tudo, as escolas e universidades precisaram se adaptar ao ensino remoto, o que não está sendo fácil para ninguém, nem para educandos e nem para educadores. São muitos aplicativos novos para administrar e aprender em pouco tempo. Isso, ainda levando em consideração que muitas famílias não tem condições de ter internet e outras tem apenas um aparelho celular para vários filhos estudarem ao mesmo tempo. Braga e Vóvio (2015) analisam, em um contexto anterior ao da pandemia, a questão do acesso à escola e aos meios tecnológicos de acordo com a classe sociais.

“se analisarmos a historia, e possível depreender que desde sua origem o acesso e o uso dessa tecnologia sempre foram privilegiados das camadas econômicas favorecidas. (BRAGA; VÓVIO. 2015, p.46-47).

Por outro lado, tenho percebido ao meu redor que a pandemia fez com que as pessoas valorizassem ainda mais o meio onde vive. Isso, tanto ensinando quanto aprendendo com os outros a ler o mundo de maneiras diferentes no ambiente doméstico e do cotidiano. Muitas das vezes esses fazeres do dia a dia fazem com que esqueçamos um pouco da realidade do mundo lá fora e das notícias ruins. Os mais velhos se ocupam com práticas de leituras de mundo, mesmo sem chamar suas atividades com esse nome. Conforme Paulo Freire (1989) fala em seu texto “A importância do ato de ler”, a leitura pode ser pensada a partir de diversos sentidos.

“os textos”, as “palavras” as “letras” se encarnavam também no assovio do vento, nas nuvens do céu, nas suas cores, nos seus movimentos; na cor da folhagens, na forma das folhas, no cheiro das flores- rosas e jasmins- , na copa das arvores, na casca dos frutos. Na tonalidade diferente de cores de um mesmo fruto em momentos distintos: o verde da manga espada, o verde da manga- espada inchada; o amarelo esverdeado da mesma manga amadurecendo, as pintas negras da manga mais além de madura. A relação entre essas cores, o desenvolvimento do fruto, a sua resistência a nossa manipulação e o seu gosto. Foi nesse tempo, possivelmente que eu, fazendo e vendo fazer, aprendi a significação da ação de amolengar”. (FREIRE. 1989, p.10).

Nos Estudos de Letramento tive a oportunidade de entender como uma pessoa analfabeta pode saber muito das coisas do mundo e da vida, e que e a leitura de mundo que antecede a leitura da palavra. Vimos em sala de aula em um antigo documentário chamado ”Leituras de um Analfabeto”, da TV Cultura. Pessoas sem domínio da escrita saiam das roças rumo à capital em busca de vidas melhores e, num mundo letrado, identificavam os ônibus por cores, por exemplo, ou por escutar os outros falarem. O interessante dessas leituras de mundo e que muitas vezes as pessoas com leituras de palavras sabem muito menos em certos contextos.

A leitura de mundo é fundamental e tem uma importância grande para nós da LEC que, a partir da Pedagogia da Alternância, intercalamos nossas práticas de aprendizado entre a comunidade, e o meio acadêmico como mencionam MAGNANI, CASTRO (2019),

A metodologia permite que estudantes estejam em suas comunidades em momentos cruciais como em época de colheita em alguns casos na universidade o tempo necessário a sua formação, bem como promove o dialogo entre saberes, envolvendo comunidade e universidade na medida em que não só atividades de pesquisas protagonizadas por estudantes são realizadas em conjunto com suas comunidades de origem ou atuação profissional como também é parte constitutiva do curso a ida periódica de docentes da universidade para orientação e execução de praticas de ensino, normalmente originários de problematizações locais. (MAGNANI; CASTRO, 2019, p.68).

Em resumo, aprendemos que um tem de ajudar o outro para que ninguém se perca no meio do caminho, juntando leitura de mundo e leitura de palavra para lidar com a realidade do mundo atual.

REFERÊNCIAS

BRAGA. D.B; VOVIO, C.L. Uso de tecnologias e participação em letramentos digitais em contextos de desigualdades. In: BRAGA. D, B; VOVIO, C. L. (orgs) Tecnologias digitais da informação e comunicação e participação social. São Paulo: Cortez São Paulo, Cortez, p.33-65,2015

FREIRE, P. A importância o ato de ler. 23 ed. São paulo, Cortez,1989

MAGNANI, L.H.; CASTRO, C.H.S. práticas letradas, tecnologias e territórios: transgredindo relação de poder. Revista X, Curitiba,v:14,n.5.p.56-81, 2019

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