Invertendo a narrativa: a verdade por trás do estupro

Por Adelaine Aparecida Santos e Maria Madalena de Oliveira Gomes*

A discussão que aqui nos propomos refere-se a desconstruir a culpabilização da vítima nos casos de estupros, comum na cultura do estupro em que estamos imersas. Apesar de ser meio óbvio que o estupro não seja causado pelas mulheres, vítimas na grande parte dos casos, percebemos que parte da sociedade não acredita na vítima e chega a culpá-la por, por exemplo, serem provocativas ao usarem certas vestimentas.

Destacamos, portanto, a importância de fornecer o apoio necessário às vítimas, uma vez que ocasionalmente não recebem o apoio adequado. O estupro é um dos crimes mais violentos, pois afeta o estado físico e emocional das vítimas. De acordo com o Código Penal Brasileiro, Lei nº 12.015 de 2009, considera-se estupro constranger alguém, violentar, ameaçar, coagir, agredir, oprimir, assediar, intimidar, forçar e praticar atos carnais sem o consentimento. A pena no Brasil varia de 12 a 30 anos, dependendo da conduta do agressor.

Segundo dados do 13º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 180 mulheres são estupradas por dia no Brasil. Em uma publicação do Correio Braziliense por Thay Martins e Cristiane Norberto, foi relatado o caso de Maria Ferrer, que foi estuprada em 2018 pelo empresário André Aranha. O sistema judicial apresentou falhas ao absolver o empresário da acusação por falta de provas, em uma votação de três votos no TJSC (Tribunal de Justiça de Santa Catarina). Essa decisão levanta sérias preocupações sobre a capacidade do sistema de agir diante de casos de violência sexual. Apesar das evidências apresentadas, como o laudo médico do recente rompimento do hímen, a perícia que encontrou o sêmen, materiais de DNA comprovando a compatibilidade, imagens de câmeras e depoimentos de testemunhas, o caso de Maria Ferrer é um exemplo contundente das inúmeras dificuldades enfrentadas pelas vítimas de estupro na busca por justiça. Ele revela, de maneira inegável, como a cultura do estupro exerce um impacto profundamente negativo no acesso efetivo à justiça. Majoritariamente, as mulheres nestes casos não são bem-vistas por causa do machismo.

Apesar das notícias citadas, os números de casos são muito maiores do que os denunciados. Isso ocorre porque, na maioria das vezes, a vítima se sente acuada diante dos constantes julgamentos. No entanto, a denúncia é um dos primeiros passos que a mulher dá em busca de justiça. Em alguns casos, as mulheres podem se sentir completamente alienadas, resultando em uma diminuição da capacidade de pensar e reagir. Esse processo de alienação muitas vezes leva à negação, na qual a mulher se culpa e se torna vulnerável, resultando em sintomas psiquiátricos evidentes. O estupro tem consequências severas e devastadoras.

Em um artigo escrito pela Secretaria da Mulher Trabalhadora (CUT), publicado por Mara Feltes, comenta-se que “o estupro não é culpa da mulher e nem da roupa que ela usa”. O problema é de caráter estrutural e precisa ser abordado em conjunto nas escolas, comunidades e na sociedade em geral. Outro ponto expressado por Feltes diz respeito aos ensinamentos transmitidos aos filhos. Eles devem aprender questões como o fato de que o corpo da mulher pertence à mulher, ela pode usar a roupa que quiser, ir aonde quiser e suas opiniões devem ser respeitadas, assim como o “não é não”. Não é necessário ensinar as mulheres a se vestirem ou a não saírem pelas ruas; o que precisa ser ensinado é o respeito mútuo, independentemente de gênero, vestimenta ou local onde estejam.

O artigo intitulado “Cultura do estupro: prática e incitação à violência sexual contra a mulher” provoca uma reflexão profunda sobre os atos de violência presentes em nossa sociedade. O texto ressalta que os estupradores podem ser encontrados em todas as esferas da sociedade, independentemente de sua posição social ou classe. Por meio de atos violentos e desprezíveis, eles abusam das vítimas contra sua vontade, violando seus direitos mais básicos. É importante salientar que a busca pela satisfação do agressor se manifesta de diversas maneiras, mas nenhuma delas justifica a agressão. A violência contra as mulheres é uma clara manifestação da desigualdade de gênero presente em nossa sociedade. É alarmante constatar que uma parcela significativa das vítimas são pessoas de baixa renda, evidenciando como essa forma de violência impacta desproporcionalmente os segmentos mais vulneráveis da população.

A violência ocorre em diversos ambientes, muitas vezes até mesmo dentro do ambiente familiar. No entanto, não se limita a isso; também pode ocorrer no trabalho, em festas, escolas, faculdades e nas ruas. O preocupante é que, na maioria dos casos, os agressores são pessoas conhecidas das vítimas, o que torna a situação ainda mais chocante, pois a vítima não esperava por tal agressão. Diante desse contexto, é urgente uma reavaliação da percepção social em relação a certas práticas. É crucial reconhecer que algumas delas, como beijo não consentido e sexo oral não consensual, também se configuram como estupro. Infelizmente, muitas pessoas ainda limitam o conceito de estupro apenas à penetração sexual, o que é um equívoco lamentável.

Para combater essa problemática, é fundamental ampliar nossa compreensão e conscientização sobre o consentimento e os limites pessoais. Devemos reconhecer que qualquer forma de atividade sexual não consensual é uma violação séria e uma violência inaceitável. Somente por meio de uma mudança de mentalidade e de uma educação continuada é que poderemos criar uma sociedade mais justa e segura.

Em uma publicação intitulada “Estupro marital” no “Direito Net – Artigos”, Luciana Andrade Maia discute o ponto de vista de Nelson Hungria e Mário de Noronha. Esses doutrinadores afirmavam que não era possível que o marido cometesse estupro contra a própria esposa, argumentando que ele tinha o direito de exigir que a mulher tivesse conjunção carnal com ele, pois isso era considerado uma das obrigações matrimoniais. Essa visão baseava-se na concepção de que o casamento impunha certas obrigações sexuais à mulher.

Ainda existem muitos pensamentos ultrapassados que limitam a visão da mulher apenas ao papel de dona de casa, restringindo-a a ter filhos e participar apenas de relações sexuais. O artigo 5º da Constituição Federal garante que todos são iguais perante a lei e devem ter a liberdade, segurança e direitos garantidos. Essa liberdade mencionada também se refere à forma como a mulher se veste, aos locais que ela queira frequentar e com quem ela quiser se relacionar. Sendo assim, a Lei Maria da Penha definiu que “a violência doméstica e familiar contra a mulher consiste em qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico ou patrimonial: III – em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação”.

Portanto, fica claro que as vítimas não são culpadas pela agressão. A violência praticada naturaliza o desrespeito aos direitos humanos. O estupro, presente em diversas partes do mundo, está intrinsecamente ligado a estruturas patriarcais que estabelecem relações de poder e dominação. Nesse contexto, existem crenças e valores socialmente aceitos que contribuem para a ocorrência do estupro. A cultura do estupro é alimentada por uma sociedade tolerante que aceita comportamentos repugnantes. Infelizmente, a mulher muitas vezes é culpabilizada, sendo vista como responsável por “incitar os homens”. No entanto, é fundamental reconhecer com maturidade que a mulher não é de forma alguma responsável pelo crime de estupro.

Acreditamos que a sociedade não ficará livre tão cedo do estupro, mas podemos optar por propostas de intervenção. Juntamente com a população e organizações não governamentais (ONGs) dedicadas à prevenção e apoio às vítimas, podemos produzir cartilhas. Outros grupos que poderiam atuar seriam os profissionais da área da saúde e profissionais da educação, fornecendo informações sobre educação sexual. Intervenções como exposição de cartazes, rodas de conversa, trabalhos nas instituições escolares e grupos de apoio podem ser ferramentas de auxílio às vítimas.

Um exemplo claro que serve para dar força às vítimas aconteceu na cidade de Toronto, Canadá, com um grupo de mulheres canadenses que foram às ruas em protesto contradiscursos de culpabilização e agressões sexuais. Após esse evento, manifestações semelhantes ocorreram em várias outras cidades. O protesto ficou conhecido como a Marcha das Vadias, que foi uma forma de intervenção. Ele chama a atenção para o fato de que nenhuma mulher está “pedindo” para ser estuprada, independentemente de como esteja vestida. Esta foi uma resposta à cultura do estupro e uma tentativa de despertar a conscientização pública sobre a violência sexual.

Portanto, é necessário quebrar os estereótipos e desafiar as normas culturais que perpetuam a cultura do estupro. É importante educar as pessoas desde cedo sobre o consentimento, o respeito mútuo e a igualdade de gênero. Além disso, é fundamental apoiar e ouvir as vítimas, garantir que elas sejam tratadas com respeito, oferecer-lhes apoio emocional e encorajá-las a denunciar os crimes. A responsabilidade de combater a cultura do estupro é de todos nós.




*Adelaine Aparecida Santos e Maria Madalena de Oliveira Gomes são acadêmicas da Licenciatura em Educação do Campo (LEC), curso ofertado pela Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM) e produziram este artigo de opinião na disciplina Diversidade e Educação, ofertada no segundo semestre de 2022 (janeiro a junho de 2023). Foram orientadas pelo professor Carlos Henrique Silva de Castro.

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