Impactos da Lei Aldir Blanc nas Comunidades Quilombolas do Vale do Jequitinhonha

Por Ângela Gomes Freire

A Lei Federal n°14.017/2020 [1], sancionada em 29 de junho de 2020, ficou conhecida por Lei Aldir Blanc em homenagem a Aldir Blanc Mendes – compositor e escritor que morreu acometido pela Covid-19 em maio de 2020 [2]. Aprovada graças à mobilização dos trabalhadores da cultura e aos diálogos realizados junto aos (às) deputados(as) no Congresso Nacional, a lei foi criada para dispor sobre ações emergenciais destinadas ao setor cultural a serem adotadas durante o estado de calamidade pública causado pela epidemia do coronavírus.

O carioca Aldir Blanc largou a medicina para se dedicar exclusivamente à música, tornando-se um dos mais importantes compositores da música popular brasileira. Autor de vasta obra musical e literária, ficou também conhecido no meio artístico por criar e integrar associações ligadas à defesa dos direitos autorais. Publicou vários livros, além de contribuir com crônicas para os jornais O Dia, O Estado de São Paulo e O Globo. Seu legado também foi deixado na televisão através das trilhas sonoras de abertura de novelas e séries.        

A Lei Aldir Blanc destina recursos públicos para ações emergenciais de apoio ao setor cultural por meio de programa de renda emergencial; subsídio mensal para manutenção de espaços artísticos e culturais, microempresas e pequenas empresas culturais, cooperativas, instituições e organizações culturais comunitárias que tiveram as suas atividades interrompidas por força das medidas de isolamento social; e chamadas públicas por meio de editais ou prêmios para realizações de atividades artísticas que possam ser transmitidas pela internet ou disponibilizadas por meio de redes sociais e outras plataformas digitais.

Os recursos para a aplicação da lei são oriundos do Fundo Nacional de Cultura através de transferência da União para estados e municípios.  Enquanto os estados são responsáveis pelo pagamento da renda emergencial, os municípios fornecem subsídio mensal aos espaços culturais. Ou seja, tanto os estados quanto os municípios têm que elaborar e publicar editais, chamadas públicas ou prêmios. Porém, os repasses feitos pela União estão vinculados à apresentação e aprovação de um plano de implementação desses recursos com a participação da sociedade civil no acompanhamento, fiscalização e construção do plano de implementação.

Em Minas Gerais, a Secretaria Estadual de Cultura e Turismo (SECULT), por meio de sua equipe gestora, lançou 27 editais, amparando assim os mais variados setores culturais da capital e do interior através da música, dança, circo, teatro, performance, artesanato, fotografia, literatura, memória, culturas populares e tradicionais, artes visuais e digitais etc. Cabe destacar que o valor total destinado à Lei Aldir Blanc de Minas Gerais (LABMG) foi de mais de R$ 155 milhões, somados os recursos de Estados e reversão de municípios. [3].

O Edital nº27/2020, referente ao credenciamento de culturas populares e tradicionais, previa um valor bruto total de R$ 20.711.600,00, distribuídos para aqueles que se inscrevessem como pessoas físicas maiores de 18 anos, em nome próprio ou representando grupos ou comunidades, com residência ou domicílio em Minas Gerais, com cadastros homologados pelo Estado e validados pelo Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (IEPHA-MG) nas seguintes categorias: I) Praticantes ou mestres, compreendendo violeiros(as), fazedores(as) de viola artesanal e mestres de capoeira; II) grupos ou coletivos, compreendendo as Folias, os Congados e o Jongo; e III) comunidades, compreendendo comunidades quilombolas, comunidades de apanhadores(as) de flores sempre-vivas, povos indígenas e outros povos e comunidades tradicionais.

Do Médio Jequitinhonha, destaca-se a experiência da Comissão das Comunidades Quilombolas do Vale do Jequitinhonha (Coquivale) [4] – organização não governamental, cujo objetivo é a unificação das comunidades quilombolas do Vale do Jequitinhonha na luta por políticas públicas de direito, reconhecendo as dificuldades logísticas e tecnológicas dos grupos e comunidades tradicionais. Os diretores da Coquivale decidiram apoiar os interessados em se inscrever no edital, preenchendo formulários, inserindo dados com consentimento dos seus líderes ou responsáveis pelos grupos ou associações quilombolas.  

Sobre o assunto, eu tive uma conversa com o presidente José Claudionor dos Santos Pinto que trouxe notícias diversas da Coquivale e de todos os envolvidos. Segundo José Claudionor, cerca de 80 comunidades foram contempladas nesse edital. Porém, para isso, a diretoria teve que realizar uma força-tarefa para inscrever grupos e comunidades. A vice-presidente, Rosária Costa Pereira, que inscreveu aproximadamente 24 comunidades, declarou que foi a primeira atividade dessa natureza que realizou. Além disso, a vice-presidente revelou seu apreço pelo envolvimento nesse tipo de trabalho participativo.

O presidente da Comissão das Comunidades afirmou que ainda é um desafio o manuseio e o domínio da ferramenta tecnológica. Para ele, o edital publicado foi simples, mas trazia complexidade no seu entendimento em questões como a execução dos recursos. Ademais, a inadimplência dos membros das associações, enquanto pessoa física, trouxe grandes preocupações, era impeditivo para se receber os recursos. Tiveram, assim, que encontrar soluções rápidas e a saída foi indicar outro membro da comunidade, envolvido no processo, para receber o recurso, o que não foi tão fácil tendo em vista que os processos burocráticos não são de domínio de todos.

As notícias trazidas da Coquivale são de que os diretores das associações disseram ter servido com amor e dedicação nessa árdua tarefa, visto que tiveram a oportunidade de interagir com as pessoas mais velhas das comunidades. Exemplificaram que puderam ensinar a elas coisas simples como tirar foto no celular, realizar um compartilhamento e postar um documento. Como havia comunidade que nunca recebeu recurso público antes, eles revelaram grande satisfação por essa oportunidade, uma vez que tinham vontade de realizar pequenas reformas na sede, reformar indumentárias e adquirir instrumentos para os grupos.

Outro ponto que os diretores consideraram relevante foi a integração com o IEPHA-Instituto Estadual de Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais, pois os municípios, através das prefeituras, tinham cadastrado algumas áreas de cultura tradicionais, como foliões, mestres de capoeira, mas não tinham retorno quanto a esses cadastros. Agora, em decorrência da Lei Aldir Blanc, para validar as inscrições, foram tomados como referência listagens, mapeamentos e cadastros de órgãos públicos estaduais e federais vinculados às categorias. Segundo os diretores, essa ação possibilitou o reconhecimento do patrimônio cultural imaterial.

O secretário de Estado de Cultura e Turismo de Minas Gerais, Leônidas Oliveira, ressaltou a importância do alcance da Lei Aldir Blanc por todo o território mineiro. O secretário enfatizou: “Temos feito um grande esforço para que os recursos da Lei Aldir Blanc cheguem até os povos e comunidades tradicionais de Minas Gerais. Neste processo de credenciamento, todas as comunidades e povos tradicionais podem e devem se inscrever, basta comprovar a atividade conforme explicado no edital. Queremos atender, sobretudo, esse público que não esteve e não está normalmente nas linhas de fomento tradicionais do Estado brasileiro, para garantir o recurso e, em maior escala, a salvaguarda da cultura fundamente em Minas, que é a cultura dos povos e comunidades tradicionais” [5].

Enquanto isso, os municípios se organizaram, de acordo com o entendimento a nível local, acatando principalmente as orientações das suas assessorias jurídicas. Porém, muitos municípios que nem sempre têm uma pasta exclusiva da cultura que, em diversos casos, é dividida com a educação, turismo e esporte, irão receber valores nunca vistos e com uma equipe reduzida para operar toda a burocracia. No entanto, comissões foram montadas para que assim tivessem maior êxito no propósito de atingir o objetivo que a lei prevê assim como suas peculiaridades.

Foi um momento dificílimo para os municípios, porque, além da pandemia, a execução da lei coincidiu com o período eleitoral. No entanto, foi interessante observar que a Lei Aldir Blanc possibilitou trazer o debate para os gestores públicos de cultura quanto à importância da implementação e regulamentação do Sistema Nacional de Cultura. Criado em 2012, esse instrumento tem como objetivo fortalecer as políticas públicas de cultura por meio de uma gestão compartilhada entre estados, municípios e a sociedade civil para ampliar a participação social e, principalmente, garantir ao cidadão o pleno exercício de seus direitos culturais.

REFERÊNCIAS

[1] https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/lei-n-14.017-de-29-de-junho-de-2020-264166628

[2] https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2020/05/04/aldir-blanc-compositor-e-escritor-morre-no-rio.ghtml

[3] http://www.cultura.mg.gov.br/component/content/category/121-lei-aldir-blanc?layout=&Itemid=437

[4] https://www.facebook.com/COQUIVALE-Comiss%C3%A3o-das-comunidades-quilombolas-do-Vale-Jequitinhonha-1672046863020304/

[5] https://portalamm.org.br/lei-aldir-blanc-edital-da-secult-disponibiliza-mais-de-r-20-milhoes-para-a-cultura-popular-de-minas-gerais/

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