Agroecologia e Meritocracia

Por Wesley Moreira dos Santos Paranhos *

O idealismo da meritocracia capitalista é um pilar estrutural das desigualdades socioeconômicas existentes tanto no campo quanto na cidade. Amplamente difundido na sociedade contemporânea, o termo propõe a existência de uma sociedade ideal composta por “vencedores natos” que, ao superarem todas as adversidades[1], conquistariam seu lugar ao sol. Esse discurso tem sido incorporado ao arcabouço ideológico do neoliberalismo[2], que defende a competição como força motriz da economia e acredita que a “competição justa” leva ao sucesso individual e coletivo. No entanto, essa argumentação é contraditória, uma vez que aqueles que defendem a conquista pelo mérito pessoal são denunciados por uma estrutura de privilégios arraigada em todas as camadas sociais, que busca manter o status quo dos modos de produção (HARVEY, 2005)[3]. Ignoram completamente a complexidade da existência humana, na qual fatores externos como situação socioeconômica, raça, gênero, orientação sexual, disponibilidade de recursos e oportunidades atuam como potencializadores ou inibidores do sucesso. Pregar a meritocracia como justiça em uma sociedade que alimenta suas desigualdades é uma compreensão simplista e fantasiosa do mundo. Essa interpretação, difundida e aceita pelo público, valida os modelos dominantes de opressão, desmobiliza as lutas de classe e intensifica as desigualdades socioeconômicas, tanto no campo quanto na cidade.

Desde a criação das sesmarias, regime no qual as terras eram cedidas segundo a capacidade de exploração de cada requerente, e que naturalmente exigia trabalho escravo (ZENERATTI, 2021)[4], o Brasil sempre sustentou uma ideia extremamente imperialista quanto às suas relações com a terra, o trabalho e os privilégios. Esse legado persiste atualmente devido às concentrações fundiárias do agronegócio, geralmente promovidas pela apropriação de terras públicas, o que resulta em aumento da precarização do trabalho e da dominação violenta de povos tradicionais (ASSUNÇÃO & DEPIERI, 2022)[5]. Não é por acaso que, após a política conservadora neoliberal intensificar a destruição dos direitos trabalhistas, ocorrem tantas denúncias de trabalho análogo à escravidão, como os ocorridos no Rio Grande do Sul (XAVIER, 2023)[6].

Assim, o agronegócio pode ser entendido como expressão do capitalismo institucionalizado no campo brasileiro. Além disso, as empresas que prestam serviços por aplicativos, embora com uma proposta diferente, geram resultados semelhantes. Em tempos de crise no mercado de trabalho, muitas pessoas assumem jornadas longas com baixa remuneração em esquemas que beneficiam apenas os empregadores, os quais encontram na terceirização uma forma de se eximir das responsabilidades trabalhistas. Podemos observar que essas mesmas relações predatórias se manifestam tanto no campo quanto na cidade, evidenciando a era da precarização laboral (OLIVEIRA; MOITA e AQUINO, 2016)[7]. O status quo e a exploração continuam em alta. Essas dinâmicas trabalhistas, cada vez mais normalizadas, revelam uma nova faceta da meritocracia que é ocultada por seus maiores defensores. Tanto a existência dos latifúndios quanto a propriedade privada dos meios de produção exercem uma pressão socioeconômica semelhante em uma dinâmica de classes. Enquanto um pequeno grupo obtém altas taxas de lucratividade por meio da exploração do trabalho alheio, outro grupo é cada vez mais fragilizado pelas mazelas de uma estrutura de concentração de renda institucionalizada e mantida pelo capital político, o qual desempenha um papel determinante na crítica da meritocracia como uma competição justa para a ascensão social.

Desde a grande carga tributária destinada ao consumo (FARIA, 2023)[8], até os ataques neoliberais aos sindicatos dos trabalhadores (OLIVEIRA, 2020)[9], não se pode negar a importância da representatividade política de peso na defesa dos interesses das lutas de classes. O agronegócio, por exemplo, possui uma das bancadas mais bem organizadas no parlamento, o que não é surpreendente, considerando sua sustentação na exploração indiscriminada da natureza, acumulação de grandes riquezas por meio de trabalho “análogo à escravidão”, apropriação de terras públicas e de territórios tradicionais. Fica a questão de como um vereador pode defender tais práticas[10], evidenciando a manifestação mais pura da defesa de seus interesses privados, que são meramente negócios. Esses episódios levantam a reflexão sobre se o trabalhador médio possui representantes com determinação ferrenha e capital político para defendê-lo, enquanto seus empregadores certamente possuem. Assim, é revelado um padrão de que a “riqueza advém do trabalho” e, se houver excessiva concentração, é provável que a pessoa errada esteja se beneficiando dele. Esse é apenas um exemplo de como o capital político pode ser usado a favor ou contra uma determinada classe, e aqueles que possuem os melhores representantes diante do estado certamente terão maiores chances de sucesso.

Enfatizo a característica central da meritocracia na agenda neoliberal: a vitória individual manifestada pelo consumo. Essa noção atribui ao indivíduo a responsabilidade exclusiva por suas conquistas e fracassos, algo que já vimos anteriormente não ser tão simples. Além disso, classifica-os hierarquicamente com base em seus padrões/quantidades de consumo. Nessa narrativa, o colega de trabalho, que vive em um cenário socioeconômico semelhante, não é visto como amigo, mas sim como concorrente. E o chefe que o oprime não é considerado inimigo, mas sim um ideal de sucesso, o que Freire chama de a “Pedagogia do Oprimido”, título de uma de suas obras mais expressivas (FREIRE, 1987)[11].

O que mais impressiona nessa narrativa é a disseminação generalizada e espontânea que ela possui em nossa sociedade, mesmo que muitos a propaguem sem sequer compreender a agenda que estão defendendo. Nessa estratégia, pessoas da mesma classe, do mesmo sangue, da mesma luta, são colocadas umas contra as outras em discussões ideologizadas, beneficiando apenas aqueles que buscam manter as atuais contradições e usando o povo como massa de manobra. Ao atacarem seus vizinhos, perdem o foco do verdadeiro inimigo e, muitas vezes, do causador de suas angústias. Isso desmobiliza a organização popular, que é a única arma daqueles que não se beneficiam de dividendos e especulação imobiliária. Até mesmo o empreendedorismo absorveu essa abordagem, criando aversões e conflitos que levam à individualização das lutas sociais, esvaziando os sindicatos e movimentos que garantem os direitos da classe trabalhadora, o que, logicamente, apenas aumenta o abismo social entre a classe trabalhadora e a burguesia, mais uma vez questionando a validade da meritocracia.

Diante de todo o exposto, o problema da meritocracia está intrinsecamente ligado a diversos fatores estruturais de nossa sociedade, que se organizam em torno de uma lógica de mercado. Portanto, seria improvável criar uma intervenção eficiente e duradoura para esse problema sem uma mudança de igual magnitude. Um movimento inicial de transformação deve se basear na implementação de novas políticas públicas que revisem os modelos de produção, trabalho e privilégios existentes tanto no campo quanto na cidade. Isso também incluiria a análise das estruturas políticas que beneficiam as elites dominantes, como a alta carga tributária direcionada ao consumo e os ataques neoliberais aos sindicatos dos trabalhadores. No entanto, em um último estágio dessa mudança, que se aproxima de uma revolução, seria necessário abandonar o último vínculo que nos prende a essas estruturas de dominação: a superação do sistema capitalista.

Referências citadas no artigo

[1] BRONDI, Paulo. Limbo meritocrático. Brasil de Fato. dez. 2021. Acesso em: https://www.brasildefato.com.br/2021/12/02/limbo-meritocratico

[2] ESQUERDA. David Harvey: O neoliberalismo é um projeto político. 2016. Acesso em: https://www.esquerda.net/artigo/david-harvey-o-neoliberalismo-e-um-projeto-politico/43872

[3] HARVEY, David. O neoliberalismo. História e implicações. São Paulo: Loyola, 2005

[4] ZENERATTI, Fábio Luiz. O acesso à terra no Brasil: reforma agrária e regularização fundiária. Revista Katálysis, v. 24, p. 564-575, 2021. Acesso em: https://www.scielo.br/j/rk/a/stvqSwRD88wztYbCpGvSB4t/abstract/?lang=pt

[5] ASSUNÇÃO, Matheus Gringo de; DEPIERI, Marcelo Alvares de Lima. O agronegócio como elemento potencializador das desigualdades no campo no Brasil. Tricontinental. 2022. Acesso em: https://thetricontinental.org/pt-pt/brasil/o-agronegocio-como-elemento-potencializador-das-desigualdades-no-ca mpo-no-brasil/

[6] XAVIER, Getúlio. PF faz nova operação contra vinícolas flagradas com trabalho escravo. Carta Capital. 2023. Acesso em: https://www.cartacapital.com.br/sociedade/pf-faz-nova-operacao-contra-vinicolas-flagradas-com-trabalho-escravo/

[7] OLIVEIRA, Eveline Nogueira Pinheiro de; MOITA, Dimitre Sampaio; AQUINO, Cassio Adriano Braz de. O empreendedor na era do trabalho precário: relações entre empreendedorismo e precarização laboral. 2016. Acesso em: https://repositorio.ufc.br/handle/riufc/52938

[8] FARIA, Glauco. Tributação tem tudo a ver com a luta de classes”, afirma Pedro Rossi. Brasil de Fato. 2023 Acesso em: https://www.brasildefators.com.br/2023/01/26/tributacao-tem-tudo-a-ver-com-a-luta-de-classes-afirma-pedro-rossi

[9] OLIVEIRA, Caroline. Por mais lucro, os neoliberais atacam sindicatos para desorganizar trabalhadores. Brasil de Fato. 2020. Acesso em: https://www.brasildefato.com.br/2020/05/01/por-mais-lucro-neoliberais-atacam-sindicatos-para-desorganizar-trabalhadores

[10] REDAÇÃO G1. Vereador do RS que discursou contra baianos é alvo de pedidos de cassação; MPT apura apologia ao trabalho escravo. G1 – Rio Grande do Sul. 2023. Acesso em: https://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2023/03/01/vereador-do-rs-que-discursou-contra-baianos-e-alvo-de-pedidos-de-cassacao-mpt-apura-apologia-ao-trabalho-escravo.ghtml

[11] FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 17a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.


 



* Wesley Moreira dos Santos Paranhos é acadêmico da Licenciatura em Educação do Campo (LEC), curso ofertado pela Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM) e produziu este relato na disciplina Diversidade e Educação, ofertada no segundo semestre de 2022 (janeiro a junho de 2023). Foi orientado pelo professor Carlos Henrique Silva de Castro.

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