Por Isaura dos Santos Lopes [1]
Ouça um trecho lido pela própria autora a seguir. O texto completo, em formato escrito, segue logo abaixo.
Nasci em fevereiro de 2000, mesmo ano em que a energia elétrica chegou em minha comunidade, na zona rural do município de Coluna no Vale do Rio Doce. Passei minha primeira infância, basicamente, tendo contato apenas com o rádio toca-fitas da minha mãe e o rádio toca-discos do meu pai. De manhã acordava ao som da rádio Itatiaia que minha mãe ligava, principalmente para ouvir as simpatias e os signos. Algumas tardes em que íamos arrumar a casa ouvíamos alguns discos ou fitas para animar a tarefa. E à noite, quando não ouvíamos as histórias do meu pai, ele colocava o disco do Buck Sarampo que eu escutava até dormir. Meu pai tinha uma coleção de discos, que inclusive está em casa até hoje.
Nessa época tínhamos uma televisão de tubo em casa, mas como não tinha antena instalada, eu e meus irmãos íamos assistir telenovelas na casa de uma vizinha (eu basicamente cochilava a novela toda). Um tempo depois um dos meus irmãos comprou o primeiro e único aparelho de DVD que tivemos em casa. Com ele escutávamos música, cantávamos no karaokê e jogávamos videogame, quando podíamos. Além dos discos do meu pai e as fitas da minha mãe, também tinha muito interesse na máquina de datilografia, que meu pai, de vez em quando, deixava a gente usar. Apesar de não usá-la muito, eu desenvolvi muito a escrita por causa dela e, mais tarde, tive facilidade em digitar no teclado do computador.
Meu primeiro contato com telefone celular, ou talvez o mais marcante, foi quando meu irmão fez um vídeo com meus primos, meus irmãos mais novos e eu brincando em um dia de chuva no terreiro de casa. Se não me engano isso foi quando tinha 10 ou 11 anos. Outra coisa que me lembro sobre o celular foi quando minha mãe ganhou um que minha irmã mais velha trouxe de São Paulo para elas se comunicarem. Era um Nokia analógico, daqueles de abrir e fechar, que, para telefonar, minha mãe precisava subir na parte mais alta do terreno, no meio do mato.
Passamos muitos anos indo no alto para telefonar, prática que perdurou até poucos anos (se não me engano em 2016) quando alguns moradores adquiriram os chamados telefones rurais, conectados a antenas nos altos onde antes os moradores tinham de subir. Esses eram telefones de mesa com fio, que no começo eram poucos, mas depois mais moradores adquiriram o produto. Esses aparelhos foram substituídos por outros sem fio, com alcance de até 100 metros da base. Devido às chuvas e tempestades de raios que atingiram as antenas, muitas pessoas abandonaram esses telefones, hoje somente na minha casa e outras duas ou três que ainda o têm, porém sempre apresentam problemas e quase não o usamos mais. Hoje em dia a maioria dos jovens possuem celular com acesso à internet e a comunidade tem sinal da operadora vivo em vários pontos, o que ajuda nosso acesso.
Após a criação da Associação Quilombola da comunidade, muitas melhorias surgiram, como a instalação de um Telecentro na comunidade. Em 2009 os computadores chegaram e ficaram na igreja da comunidade, foi quando tive meu primeiro contato com um computador de mesa. Não sei o nome, a marca ou o modelo dos computadores que tinham no Telecentro, só sei que foram adquiridos através de um projeto com a Fundação Banco do Brasil e na comunidade era meu irmão quem estava à frente disso. Nesse período ainda não tínhamos internet para conectar os computadores, então fazia aulas de digitação e formatação no computador com meu irmão e jogávamos alguns joguinhos, principalmente xadrez. Em 2012 o Telecentro foi transferido para o mesmo prédio da escola, onde também é sede da Associação Quilombola, quando recebeu acesso à internet. Mas eu frequentava outra escola, uma estadual fora de minha comunidade, e ia ao Telecentro sempre que podia para jogar e fazer pesquisas e trabalhos da escola.
A primeira vez que vi um notebook foi aos 10 ou 11 anos, quando um técnico da Emater foi na comunidade e passou para nós um filme sobre o quilombo. Em 2017 voltei a ter contato com um equipamento desses, que era o do meu irmão. Foi esse mesmo que em 2018 passei a compartilhar com minha irmã, pois fomos aprovadas no vestibular da Licenciatura em Educação do Campo (LEC). Antes, na escola onde estudei dos 11 aos 17 anos, as tecnologias de imagem e som utilizadas eram o projetor (datashow), televisão para assistir a filmes e o aparelho de som que tocava músicas no recreio. Que eu me lembre, fui uma vez à sala de informática para fazer uma pesquisa de geografia. Praticamente não utilizava os computadores, pois não havia para todos. O uso de celulares não era proibido nessa época e era comum os colegas ficarem jogando durante o intervalo, entre a saída de um professor e a entrada de outro. Mas também eram de difícil aquisição.
No meu estágio de regência, procurei utilizar recursos digitais para as aulas, como o datashow e o uso de plataformas de vídeo. Porém o datashow só funcionou nos primeiros dias, depois tive que utilizar o quadro e o celular mesmo. Também me comunicava com os estudantes por aplicativo de mensagem online via WhatsApp. Esse aplicativo eu uso desde os 18 anos de idade, quando o criei para fazer parte de um grupo da turma da LEC. O Facebook eu já utilizava desde a época do Telecentro. Hoje em dia a minha rede social preferida é o Instagram, pois a acho bem diversificada.
Mesmo tudo estando conectado às redes sociais, eu consigo ficar um bom tempo do dia sem conferir e-mails, mensagens no WhatsApp e notificações do Facebook. Para me ajudar nessa questão, uso as funções de bem-estar digital e modo sem distrações do celular, que permitem controlar os aplicativos que usarei por um determinado tempo. Além disso, posso controlar quanto tempo por dia cada aplicativo (como das redes sociais Kwai, Instagram, TikTok) pode ser usado
Quando a pandemia chegou literalmente ao meu alcance, eu estava em um intercâmbio na Argentina. A pretensão era passar 3 semanas em Córdoba fazendo um curso de espanhol e interação cultural, porém, no fim da primeira semana já decretaram lockdown. Com isso, estendemos a permanência na Argentina e passamos a utilizar a ferramenta Zoom para ter aulas de espanhol. Como estávamos só eu e meu irmão isolados, eu acordava de manhã e depois do chá matinal participava da aula no Zoom, assistia a televisão, conversava com meus familiares pelo WhatsApp e usava o Instagram e um app de bate papo muito popular em Córdoba, o Holla em que pude praticar mais o idioma.
De volta ao Brasil, ainda no auge da pandemia, além de cursar a LEC, atuei como conselheira estadual de assistência social de Minas Gerais no CEAS-MG, com reuniões mensais. Com o uso intenso de tecnologias on-line para comunicação e redes sociais, precisei colocar internet em casa. Mas a internet que instalei era muito falha e prejudicou bastante minha participação, tanto no CEAS como nas aulas da LEC.
Pensando na minha atuação profissional, procuro considerar minha experiência de vida e a realidade que observei no estágio e na minha comunidade. Nesses contextos, noto que o uso de tecnologias digitais é diferente de acordo com as classes sociais. Apropriar-se dessas tecnologias é um passo para minimizar a condição de inferioridade que os não conectados são colocados.
Na educação, não vejo as novas tecnologias digitais como “vilãs”, nem mesmo como “salvadoras”, mas acredito que vai depender de como as usamos e esse uso deve buscar a criticidade dos estudantes. Cabe a nós, enquanto educadores e futuros educadores, buscar um uso pedagógico para elas.
[1] Isaura dos Santos Lopes é graduanda do curso Licenciatura em Educação do Campo (LEC), da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM).
Este trabalho foi orientado pelos professores Carlos Henrique Silva de Castro, Luiz Henrique Magnani e Mauricio Teixeira Mendes.