Práticas Letradas no Contexto da Pandemia

– Delane de Fátima Eusébio –

Delane verificando atividades em agenda digital.

Sou Delane, tenho 25 anos de idade, resido na comunidade de São Gonçalo do Rio das Pedras, distrito de Serro-MG. Há poucos meses eu morava com minha mãe e mais dois irmãos, algo que mudou recentemente. Em outubro de 2019, eu e meu namorado, que já estávamos juntos há seis anos, tomamos a importante decisão de ficarmos noivos. E o casamento veio a ser um ano depois. Como muitos de nossos projetos para 2020 tomaram rumos inesperados diante da pandemia, a realização do nosso casamento na data planejada estava ameaçada. Apesar da necessidade de cancelarmos a festa e readequar a execução da cerimônia, ainda se tornou possível a concretização da nossa união matrimonial na data desejada.

Assim, a partir de outubro do ano passado, residem na nossa casa somente eu e meu marido. Estamos fazendo o mesmo curso de Licenciatura em Educação do Campo, no mesmo período e ambos na mesma habilitação, o que é maravilhoso, pois nos ajudamos em tudo, principalmente em se tratando de ferramentas digitais, que não é “meu forte”, mas que ele domina bem melhor. Possuímos em casa para contribuir com nossos estudos: rede wi-fi, que instalamos justamente em razão de necessidade por causa do curso, (mas que nem sempre funciona satisfatoriamente); um notebook, o qual, apesar do seu bom estado físico, infelizmente não se encontra em condições favoráveis para o uso, mas que ainda nos atende dentro do possível; e dois celulares.

O último aparelho celular que eu tinha não atendia mais às minhas necessidades diante do ensino remoto, sua memória era insuficiente para abrir arquivos, baixar aplicativos e etc. Dessa forma, apesar de o momento não estar financeiramente propício a isso, precisamos comprar um aparelho novo. E esses equipamentos eletrônicos têm sido uma forma de escape também para o entretenimento, onde em certos momentos livres optamos por assistir filmes (gospeis, de aventura e comédia). Gostamos também de realizar leituras bíblicas, jogos domésticos e exercícios físicos. Além de mexer com jardim e plantas em geral, como também ouvir e louvar hinos evangélicos, que são meu fascínio.

Há 4 anos trabalho como atendente no Centro de Atendimento ao Turista (CAT), aqui na minha comunidade, contudo, não é um trabalho muito garantido, visto que o contrato é renovado anualmente. E este ano, com mudanças na gestão e contínuas paralisações no setor turístico, por não compor a lista de serviços essenciais, meu contrato até o presente momento não foi renovado e consequentemente não estou trabalhando. Já meu marido trabalha como motoboy aos finais de semana e nos outros dias como autônomo. Esse período pandêmico, afetou diretamente o trabalho com o turismo. Os atrativos naturais, que são os principais destinos turísticos daqui, e locais para hospedagem encontravam-se proibidos de receber pessoas até o momento da escrita desse texto (abril de 2021), algo que tem refletido fortemente na economia local.

Outro ponto que abalou significativamente também nossa rotina foi o fechamento dos templos religiosos. Eu e meu marido somos evangélicos e tínhamos o hábito de ir a cultos e outros trabalhos ligados às nossas práticas cristãs, mas infelizmente a necessidade do distanciamento social tem nos privado também de tais atividades. Aquilo que é possível, como por exemplo o ato da oração, fazemos em casa. Particularmente vejo na fé em Deus um escape para manter viva a esperança de dias melhores pela frente.

ESTUDOS NO CONTEXTO DO ENSINO REMOTO

A presença da COVID-19 tem trazido mudanças radicais na rotina de toda a população. Sendo assim, não teria como ser diferente nos estudos, em que a modalidade presencial precisou ser temporariamente suspensa, dando lugar ao ensino remoto como mais uma medida protetiva. Uma das minhas dificuldades enfrentadas diante dessas novas condições de estudos têm sido o choque entre obrigações diárias, aulas, tarefas e trabalhos propostos. Isso porque no período de Tempo Universidade do curso da LEC-UFVJM, outrora vivenciado, tínhamos todo o tempo voltado para nossas atividades estudantis, o que acaba sendo um aspecto bastante facilitador. Mas, estando em nossas comunidades, com toda uma rotina diária para cumprir, acaba sendo complexo realizar todas as obrigações necessárias sem que uma afete a outra.

Outro fator dificultador é o fato de que são muitas distrações que surgem a fim de tirar o nosso foco. É um celular que toca, uma visita que chega, dentre outros. E nem sempre é possível não dar atenção, já que a pessoa não tem como adivinhar que estamos ocupados. O melhor método de organização que considero diante dessas questões é um gerenciamento do tempo, exceto em alguns contratempos inevitáveis, para que possa haver comprometimento suficiente em todas as áreas, porque sempre gostei de que tudo o que se encontra sob a minha responsabilidade e que depende de mim seja feito da melhor forma possível, ainda que possa ser uma tarefa árdua.

Em termos de aprendizado, sinto que houve uma perda expressiva. Ao ter acesso aos conteúdos das aulas e também contato com os professores e colegas somente através das telas dos nossos aparelhos eletrônicos, percebo grande prejuízo na troca de saberes, visto que a interação é muito menor. E, por mais que haja esforço mútuo, o resultado final e o aproveitamento acaba sendo bastante inferior em comparação com o ensino presencial. Essa nova e complexa rotina de estudos requer de cada um de nós muita paciência, força de vontade, coragem para enfrentar infortúnios, a fim de estarmos “abertos” a novas práticas letradas diante do ensino remoto. Tarefas nada simples, no entanto imprescindíveis para amenizar os impactos sofridos diante das adversidades enfrentadas por cada um. Atitudes que tenho procurado adotar e tem sido proveitosas.

Nunca fui de ter facilidade no que diz respeito à tecnologia, mas têm circunstâncias em que não temos alternativa e a saída é procurar aprender ou, pelo menos, tentar. E, para manusear ferramentas digitais como o Moodle e o Google Meet, tem coisas que consigo fazer sozinha e outras não, depende muito da tarefa proposta pelos professores. A minha vantagem é que tenho em casa meu marido, que cursando o mesmo curso que o meu, atua como um grande suporte para mim, pois nessas áreas possui um grau de facilidade bem mais avançado que eu, e nesse processo venho aprendendo bastante com ele. E, apesar de professores que não fazem muito esforço para contribuir com as demasiadas dificuldades enfrentadas pelos alunos, é notável como alguns têm se empenhado em deixar esse fardo bem mais leve, algo de suma importância para todos nós discentes.

Erros, acertos, dúvidas, questionamentos, aprendizados, dificuldades. Acredito que são coisas que inevitavelmente irão nos acompanhar durante todo esse processo que aparenta ser longínquo, mas não podemos perder de vista o ânimo e a esperança, extraindo o que há de melhor em cada experiência que a nós for endereçada.

ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE O PROCESSO

A pandemia tomou proporções inimagináveis e trouxe consigo a necessidade de adoção de um ensino remoto para não haver estagnação total no processo de aprendizagem.Não foi um método recebido com grande satisfação pela totalidade dos envolvidos, principalmente no meio discente, perante a realidade que muitos enfrentam. Sob a ótica de Silveira, Piccirilli e Oliveira, pode-se colocar em pauta que:

  • Aprender se tornou mais um desafio em meio à luta contra o coronavírus. As rápidas mudanças, alto nível de cobranças, frustrações diárias e dificuldades técnicas durante o ensino remoto comprometem o psicológico dos estudantes. É possível presenciar que entre os termos mais utilizados pelas pessoas com as quais conversamos para descrever a situação apareceu ansiedade, cansaço, estresse, preocupação, insegurança, medo, cobrança e angústia. (SILVEIRA, PICCIRILLI, OLIVEIRA, 2020, p. 125).

Ocorre que, com a ausência de alternativas mais plausíveis, a saída foi acatar a proposta sugerida e procurar se adequar a ela dentro das possibilidades pessoais de cada um. Apoiada nos debates e reflexões realizadas no decorrer das atividades do curso, refleti mais profundamente sobre interações por intermédio de recursos tecnológicos, sobretudo em territórios campesinos, que é onde se encontram os obstáculos mais visíveis. Através de atividades compartilhadas em fóruns interativos de ambientes educacionais, tive a oportunidade de conhecer mais sobre experiências similares à minha, enfrentadas por colegas do mesmo curso, concernentes aos aprendizados e dificuldades vivenciados no presente momento. Isso tudo reforçou meu entendimento de que residir no campo com acessos minimizados a certos recursos, sobretudo internet de qualidade, acarreta variadas disparidades quando comparadas a outrem que usufruem de mais oportunidades e mecanismos de estudos. A esse respeito, inclusive, recupero colocações de Magnani e Castro, quando pontuam que:

  • É comum termos estudantes que acessam os ambientes virtuais de aprendizagem apenas pela rede celular, o que, em muitas situações, é um impeditivo para abrir um arquivo maior ou rodar um vídeo. Em contextos assim, não surpreende que práticas com texto desconsiderem, por exemplo, o uso de corretores ortográficos e editores de texto online. (MAGNANI, CASTRO, 2019, p. 71).

Souza (2020) também argumenta que:

  • Embora nas últimas décadas a educação do campo tenha ganhado mais atenção e se aprimorado em muitos aspectos, percebe-se que ainda necessita evoluir muito para que se tenha uma educação de qualidade e que atenda de maneira satisfatória às demandas das populações rurais. (SOUZA, 2020, p, 15)

Acredito que vir de famílias nas quais certas práticas de letramento escolar não são comuns e, consequentemente, certos hábitos de leitura e escrita são escassos ou inexistentes, favorece para que alguns estudantes oriundos do campo enfrentem dificuldades diante de certas demandas de linguagem no contexto acadêmico, as quais pressupõem ou exigem experiências específicas. Poderia citar como exemplos tanto o domínio prévio de meios tecnológicos e ferramentas digitais em geral, além da familiaridade antecipada com o universo dos livros.

No presente semestre letivo refleti também sobre as noções de ‘leitura de mundo’ e ‘leitura de palavra’, concepções inspiradas nessas mesmas noções apresentadas por Paulo Freire. Na leitura de palavra, a maneira de se relacionar com o mundo pela linguagem inclui práticas escritas, que façam uso da tecnologia do alfabeto e que geralmente carecem de um processo de escolarização para estímulo da capacidade de decodificar letras. A leitura de mundo pode envolver símbolos, sinais, objetos, conhecimentos empíricos, dentre outras possibilidades. Por meio da discussão centrada nesses conceitos foi possível compreender que pessoas consideradas “iletradas” a todo o momento leem o mundo – todavia, muitas vezes de um modo diferenciado daqueles que são alfabetizados. A esse respeito, vale recuperar a consideração de Freire (2003), quando diz que:

  • Desde muito pequenos aprendemos a entender o mundo que nos rodeia. Por isso, antes mesmo de aprender a ler e a escrever palavras e frases, já estamos ‘lendo’, bem ou mal, o mundo que nos cerca (FREIRE, 2003, p.27)

Apesar das adversidades presentes no cotidiano de todos os que se encontram inseridos em meio a esse recém-adotado modelo de ensino, o qual tem sido desafiador, não se pode negar que dessa experiência é possível extrair aprendizados. Tais aprendizados envolvem tanto os conteúdos provindos das disciplinas, quanto os contatos, ainda que indiretos, com os professores e colegas, a partir dos quais foi possível perceber particularidades e similaridades entre realidades vividas. Penso que o melhor é seguimos nos ajudando, somando forças em prol do coletivo, na perspectiva de nos adaptar a cada nova situação que porventura surgir, visando conquistas, bom aproveitamento do curso e, por fim, resultados significativos na prática educativa como um todo.

REFERÊNCIAS

FREIRE, Paulo Reglus Neves. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. 45ª ed. São Paulo: Cortez, 2003.

MAGNANI, Luiz Henrique; CASTRO, Carlos Henrique Silva de. Práticas letradas, tecnologias e territórios: transgredindo relações de poder. Curitiba, volume 14, n.5, p. 56-81, 2019.

SILVEIRA, Ana Paula; PICCIRILLI, Giovanna Maria Recco; OLIVEIRA, Maria Eduarda. OS DESAFIOS DA EDUCAÇÃO À DISTÂNCIA E O ENSINO REMOTO EMERGENCIAL EM MEIO A PANDEMIA DA COVID-19. Revista Eletrônica da Educação, [ S.l.], v.3, n.1, p. 114-127, dec. 2020.

SOUZA, Everton de. Escolas do campo e o ensino remoto: vozes docentes nas mídias digitais. V. 14, n. 30: set./ dez. 2020.

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