Os povos tradicionais, o direito de modos de vida próprio e a nossa realidade

Por Ana Roberta Cléo dos Santos Ferreira e Claudemar Alves Ferreira*

Quilombo de Raiz / Presidente Kubitscheck-MG

No decreto n° 6.040, de 7 de fevereiro de 2007[1], artigo 2º, está expresso que os povos tradicionais têm o direito de ter seus modos próprios de vida. Mas percebe-se que, na prática, o direito assegurado. Esse cenário só está assim por ação de mineradoras, garimpos ilegais e agronegócio nos territórios nos quais, teoricamente, os modos de vida tradicionais deveriam estar protegidos.

Os povos de comunidades tradicionais carregam em suas memórias, e sobretudo em suas práticas cotidianas, seja no plantio, ou no feito do alimento, tradições de suas ancestralidades, relacionadas às condições social, econômica e cultural, que sem um ambiente ecologicamente equilibrado fica inviabilizado. Têm um modo de fazer, ser e viver próprio, definido pelas relações territoriais, preservação da memória, saberes tradicionais diversos, mas sobretudo no uso de recursos naturais, ou seja, todo um patrimônio cultural material e imaterial historicamente construídos. E se reconhecem como um grupo, que são portadores de uma identidade própria e que deve ter seus direitos preservados, tal como aponta o Decreto 6040[2], no seu Inciso I, do art. 3.º, de 7 de fevereiro de 2007, que define comunidades tradicionais:

 (…) grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição.

Esse mesmo decreto garante que essas identidades e modos de vida sejam garantidos, no seu artigo 2º que diz:[3] “Reconhecer, proteger e promover os direitos dos povos e comunidades tradicionais sobre os seus conhecimentos, práticas e usos tradicionais”. No entanto, para comunidades como o Quilombo de Raiz, no município de Presidente Kubitscheck/MG, onde vivem estes autores, a lei fica somente no papel, pois o direito da terra é de grandes fazendeiros. Com isso, os moradores do Quilombo de Raiz tiveram o acesso privado a essas terras, o que garantiria sua relação territorial e seus modos de próprios de vidas, pois é nessas terras que faziam suas atividades tradicionais como apanhar flores de sempre-vivas, lenha e esterco, coletar ervas medicinais etc.

Com a presença dos “homens de poder”, os moradores da comunidade encontram-se encurralados em seu próprio território, que tem grande valor patrimonial e cultural. Como resultado da ação externa tão perto, a comunidade perdeu muito do seu vínculo cultural com tradições dessas terras. O que contraria o artigo 225 da Constituição Federal de 1988[4] que afirma: “Todos têm o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo essencial à sadia qualidade de vida.”

Atualmente, 90% do território do Quilombo de Raiz encontra-se nas mãos de grandes donos de empreendimentos, que fazem desse território uma grande fonte de renda com a monocultura de eucalipto e a mineração, ignorando os vastos prejuízos aos verdadeiros donos e posseiros das terras, o povo quilombola. O território onde era feita a coleta de sempre vivas, frutos do cerrado, ervas medicinais entre outros, uma das formas de sustentos da comunidade, hoje está coberto pela monocultura de eucalipto e área restrita de acesso pela mineradora.        

No Brasil, são vários os direitos das comunidades tradicionais que são violados, tal como o exemplo dado. Infelizmente, a maioria desses territórios está nas mãos de grandes fazendeiros que têm apoio político. Esses, sem conhecer a realidade desses territórios ou com interesses particulares, liberam licenças de exploração das áreas, que muitas vezes resultam em grande prejuízo e destruição para a população local. Destroem o coração de um povo que vive e depende desses espaços para sobreviver, mas perdem até a dignidade. Quando chegam a promessa é sempre de trazer benefícios, o que de fato nunca acontece, pois objetivo de sempre é extrair recursos naturais para vender.

Outro exemplo de domínio de terras e destruição de população e culturas recente é o caso das terras indígenas ianomâmi, no norte do país. Ao invés de benefícios, segundo noticiado largamente[5], os invasores levaram a esses povos doenças, desnutrição, poluição de águas, abusos de toda sorte, inclusive sexual. Assim vão acabando com a memória daquele povo e de muitos outros, que em cada pedaço de seus territórios têm uma parte de suas histórias.

Na ausência de uma atuação política institucional forte, como vimos nos últimos anos de governo que permitiu que a tragédia se abatesse sobre os ianomâmis, a população deve buscar novos recursos e parcerias para reivindicar os direitos e fortalecer suas lutas. É importante, também, realizar debates nas comunidades sobre seus direitos, de maneira crítica e biscando entender o que está sendo ou pode ser violado. Há em algumas comunidades protocolos de defesa dos principais direitos, mas cabe aos moradores entenderem esses protocolos, as leis que os regem, e tê-los em mãos para buscar ajuda de autoridades sempre que necessitarem, no caso de violação dos territórios e outras violências.


[1] Disponível em <https://presrepublica.jusbrasil.com.br/legislacao/94949/decreto-6040-07>. Acesso em 10 de fevereiro de 2023.

[2] [3]Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2007/Decreto/D6040>. Acesso em 30 de janeiro de 2023.

[4] Disponível em:<https://www.jusbrasil.com.br/topicos/10645661/artigo-225-da-constituicao-federal-de-1988>. Acesso em 05 de fevereiro de 2023.

[5] Disponível em:<https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2023/01/23/governo-bolsonaro-disse-para-onu-que-ianomamis-estavam-sendo-atendidos.htm>. Acesso em 29 de janeiro de 2023.




*Ana Roberta Cléo dos Santos Ferreira e Claudemar Alves Ferreira são quilombolas do Quilombo de Raiz e acadêmicos da Licenciatura em Educação do Campo (LEC), curso ofertado pela Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM). Produziram este artigo de opinião na disciplina Diversidade e Educação, ofertada no segundo semestre de 2022 (janeiro a junho de 2023), orientados pelo professor Carlos Henrique Silva de Castro.

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