Minhas memórias

Minhas memórias

Por Claudiana Aparecida de Paula [1]

Desde a infância, sempre morei em área rural, no povoado nomeado como Canavial, no município da cidade de Santo Antônio do Itambé, Minas Gerais. Antes de seis anos, eu já frequentava a escola, não formalmente, mas como acompanhante de minha irmã mais velha, Graciele Ferreira, que não gostava de ir para a escola. No período em Graciele estudava, eu ficava dentro da sala folheando alguns livros infantis, observando as imagens que tinham neles. Um dos primeiros livros que tive contato, e lembro bem, foi “João e o pé de feijão” e a “Menina bonita dos laços de fitas”.

Enquanto minha irmã estava sendo alfabetizada, comecei querer aprender também, entretanto, eu não podia participar da aula como os outros alunos. A professora, então, doou-me alguns materiais, como gibis, canetinhas, giz de cera, dominó com números ou com letras do alfabeto para que eu desenvolvesse algumas atividades, não avaliativas. Meu interesse foi aumentando cada vez mais. 

Em casa, pedia ajuda aos meus irmãos mais velhos com o alfabeto. A partir daí, aguardava ansiosamente a oportunidade de ingressar regularmente na escola. Com sete anos, aconteceu o que eu mais queria: enfim fui matriculada na escola. Devido à trajetória anterior, tive mais facilidade na alfabetização do que meus demais colegas.

Desde o início do meu primário até a quarta série, estudei com apenas uma professora a cada série. Recordo-me constantemente das minhas queridas professoras, que à época chamávamos de “tia’’. Tia Rosângela, tia Vanir, tia Rosilene e tia Marilene. Sempre as considerei de suma importância em minha vida, pois era na escola que eu mantinha um contato diário com professores, colegas e as serventes, que também foram significativas em minha vida. Cresci ouvindo meus pais dizerem que “a educação vem do berço”, ou seja, que o respeito e os bons costumes devem ser aprendidos em casa. Recebi apoio para estudar de meus pais, Inedina Vitorina e José Anselmo, que sempre me incentivavam para que eu continuasse a seguir em frente. Rosângela foi a professora que me alfabetizou, e, juntamente com as outras professoras, fui desenvolvendo outras práticas de letramento, processo lento e complexo de compreender o mundo.

Com o passar dos anos, fui transferida para a Escola Estadual Alcebíades Nunes, na cidade de Santo Antônio do Itambé, onde estudei as séries finais do Ensino Fundamental II e o Ensino Médio. Durante esse período, tive uma visão diferenciada do mundo, porque eram ambientes novos. Fui conhecendo novas pessoas professores e colegas e, com isso, fui fazendo novas amizades e aprendendo diversos conhecimentos. Ao finalizar o Ensino Médio, tive interesse em fazer alguns cursos profissionalizantes, por isso fiz o curso de Magistério, no ano de 2016, uma forma que encontrei de continuar centrada nos estudos. Então, no ano de 2018, ingressei no curso de Licenciatura em Educação do Campo, na UFVJM, estruturado com a Pedagogia da Alternância. Essa é uma forma de ensino contextualizado, disposto de maneiras alternativas: no Tempo Universidade e Tempo Comunidade. Assim, os estudantes conciliam os conhecimentos acadêmicos com a realidade das suas comunidades, de seus territórios. E esse curso nos possibilita o trabalho com os conhecimentos científicos juntamente com os conhecimentos populares.

Em minha percepção, a cada etapa de nossas vidas, temos uma nova maneira de ver o mundo. O tempo e o espaço fazem com que vivenciemos novas experiências e diferentes conceitos. E todo aquele conhecimento que aprendemos no primário se torna um alicerce para as nossas vidas futuras. Esse conhecimento vem sendo aprimorado a cada vez que conseguimos fazer uma leitura crítica do mundo.

[1] Este texto é parte do ebook Memórias de Letramentos II: Outras Vozes do Campo, disponível para download gratuito aqui: auladigital.net.br/ebooks.

Varanda da minha infância

Varanda da minha infância

Por Carla Batista Dias [1]

Durante minha infância, antes de entrar na escola, tive acesso à leitura e à escrita através de livros de história infantil, revista em quadrinhos e panfletos de supermercado. Lembro-me de meu pai lendo apostilas sobre temas relacionados à saúde, pois ele era agente comunitário, escrevendo atas da associação, de minhas tias escrevendo receitas de bolos. O primeiro livro que tive foi da “Branca de neve”, um presente da minha tia. Eu estava iniciando os estudos e precisava ter este contato com os livros. 

Meus pais sempre me incentivaram a ler, mostrando-me as letras do alfabeto, desde que eu tinha quatro ou cinco anos. Quando entrei na escola já sabia escrever meu nome e associar algumas palavras a objetos, como, por exemplo, bola, dado, gato, rato entre outras. Foi um momento de alegria, pois este era o sonho da maioria das crianças: aprender a ler e a escrever.

Nos primeiros anos na escola, a prática de escrita foi bem tranquila, porque não tive tanta dificuldade em relação a associar as letras às palavras. Minha professora me incentivava muito a ler, e a aprender a escrever as palavras corretamente. Os textos escritos, em sua maioria, eram sobre a nossa própria história de vida ou sobre algumas histórias que nossos pais contavam. Recordo-me que, no Ensino Fundamental I, fazia leitura de historinhas e depois a recontava, produzindo histórias em formato de desenhos. No Fundamental II, fazia leitura de livros pedagógicos, literários e de contos, produzindo redação dissertativo-argumentativa, cartas, bilhetes, entre outras. Já no Ensino Médio, lia revistas científicas, textos literários e livros pedagógicos. Também assistia filmes, fazia debates a respeito das leituras, preparava peças teatrais com temas dos livros literários. Na minha escola havia uma biblioteca, e os alunos tinham livre acesso a ela, pois estava sempre aberta para o uso. Éramos incentivados a ler com o projeto “Leitor nota 10”. Tínhamos que ler muitos livros e depois recontá-los para a classe. Aqueles que conseguissem recontar os textos teriam a nota de melhor leitor da classe.

As mudanças nas minhas relações com a leitura foram muito grandes, desde o Ensino Fundamental até o Médio, já que tive contato com vários tipos de livros e isso me possibilitou ler mais e, ao mesmo tempo, escrever. No momento que passei a ler e compreender os textos, pude ter outros conhecimentos e a desenvolver a prática de escrita. O livro que mais marcou minha vida e que, de certa forma, ajudou-me bastante com minha escrita foi o livro “Projeto Semeando Torrãozinho”, que abordava temas sobre a água e a terra. Tínhamos que lê-lo e fazer uma redação, buscando soluções para o problema apresentado na narrativa. Não considero que a escola tenha me ajudado a ler melhor e relacionar os textos com minhas práticas sociais, porque muitas vezes focamos atenção somente no autor e não a contrastamos com as nossas.

Atualmente, com 23 anos de idade, resido na comunidade quilombola Pega, no município de Virgem Da Lapa. Em 2018, ingressei na UFVJM, em Diamantina, no curso em Licenciatura em Educação do Campo. Penso que o curso dialoga com minha comunidade, porque relaciona o conhecimento científico ao conhecimento popular do meu grupo social. Em relação à leitura, tive uma grande transformação: troquei os livros que lia por prazer e pelas leituras que me ajudam a compreender os conteúdos propostos pelas unidades curriculares. Há um ponto positivo em toda essa mudança: ela me propicia novos conhecimentos sobre o campo científico, o acesso a novos livros de autores diferentes e a ter contato com linguagens diferentes. É uma experiência enriquecedora, pois abre novas possibilidades de leitura.  Não é possível aprender somente com o conteúdo passado nas unidades curriculares. Vou além, busco novos livros e outras ideias para compreender um determinado assunto. Isto é muito bom, pois comecei a me dedicar mais às leituras, não só a elas, mas também a debates que têm me ajudado bastante a argumentar.

Ainda tenho dificuldade em compreender alguns textos, por ter um tempo corrido e vários textos diferentes para ler. Os que mais me identifico são os relacionados ao sujeito do campo, pois trabalham minha realidade como campesina, motivo pelo qual faço esse curso.

[1] Este texto é parte do ebook Memórias de Letramentos II: Outras Vozes do Campo, disponível para download gratuito aqui: auladigital.net.br/ebooks.

Letramento visual

Letramento visual

Por Alexandre dos Santos Baldaia [1]

Tenho vinte anos, nasci, cresci e resido atualmente na comunidade Quilombola do Paiol. Na minha infância tive poucas oportunidades de ler um livro ou mesmo de ter um, pois naquela época era tudo muito difícil. Minha família sempre morou no campo, assim não tive muitos contatos com a leitura. Apenas quando meus irmãos mais velhos começaram a estudar na escola do município, trazendo alguns livros didáticos para casa é que tive os primeiros contatos com os livros.

Como eles já sabiam ler, passaram a me ajudar a decorar o alfabeto e a escrever as primeiras palavras. Foi assim que aprendi a escrever meu nome, e sempre tive interesse em ler. Nesses livros didáticos também havia algumas histórias em quadrinhos, como “A turma da Mônica”, por exemplo, que eu tentava entender, porque ainda não sabia ler.  Na minha infância, então, aprendi primeiro a ler as imagens: sempre que olhava qualquer tipo de figura, tentava descobrir uma posição crítica no texto, pensando sempre no que poderiam representar.e

Aos seis anos de idade ingressei na escola e com sete anos comecei a ler e a escrever. Foi muito difícil me adaptar àquele lugar e a usar o lápis. Cheguei a pensar, em certo momento, que não conseguiria aperfeiçoar a prática de leitura. No entanto, os professores sempre exigiam que eu e meus colegas lêssemos e escrevêssemos. Sempre nos passavam o alfabeto e, logo em seguida, tentávamos escrever nosso nome, o nome da cidade e da comunidade em que morávamos. Começar a ler foi a melhor experiência que tive, porque a cada dia eu procurava aperfeiçoar minha prática de leitura e, assim, fui aprimorando meus conhecimentos. Meus primeiros livros foram dados por minha mãe quando entrei na escola. Todos os anos, passava um homem vendendo alguns kits de livros perto de minha casa. Como minha mãe é religiosa, optou por comprar livros religiosos. Recordo-me que, do início ao final do Ensino Fundamental I, os professores sempre exigiam dos alunos que lessem livros durante a aula. Lembro-me que um desses livros era “O rato roeu a roupa do rei de Roma”.

Sobre o papel da escola no desenvolvimento da leitura, penso que tanto professores quanto diretores incentivam a leitura nos primeiros cinco anos iniciais do Ensino Fundamental I, mas depois passam a não dar valor à leitura, como se os alunos não necessitassem mais ler. Acredito nisto porque não os vi passando livros para leitura e discussão em sala de aula após o período mencionado. Na escola havia uma biblioteca, mas não podíamos pegar livros para ler. Também não podíamos levar livros para a casa, pois, segundo a escola, não tínhamos responsabilidade e poderíamos sujá-los.

Quando terminei o Ensino Médio, fiquei um período sem ter acesso a livros, pois trabalhava no campo e quase não tinha tempo para ler. Ao entrar na Universidade, comecei a ler alguns textos acadêmicos, assim voltei a ter o hábito de ler. No entanto, alguns desses textos são cansativos e difíceis de entender, mas sei que são necessários, pois a partir desses livros começamos a ter uma visão de mundo que será útil em minha vida profissional e social. As dificuldades que tive em ter um livro ou até mesmo para ler me fizeram perceber que a leitura não se realiza apenas oralmente; e que o letramento não é um processo de decorar o alfabeto ou ler. Entendi que o que está por trás disso tudo. Entendo que para me tornar um educador do campo é preciso buscar conhecer a realidade dos alunos e contextualizar o ensino.

[1] Este texto é parte do ebook Memórias de Letramentos II: Outras Vozes do Campo, disponível para download gratuito aqui: https://auladigital.net.br/ebooks.

A vacinação no Brasil do século XIX ao XXI

A vacinação no Brasil do século XIX ao XXI

Por Ângela Gomes Freire

No Brasil do século XIX, início do período republicano, houve o processo da industrialização, momento do crescimento desordenado da população urbana, contando com uma grande migração das áreas rurais. As aglomerações urbanas decorrentes desse processo resultavam muitas vezes em péssimas situações de moradia para seus habitantes, que não raro eram acometidos por surtos de doenças, como varíola, cólera e malária, entre outras [1].

Em paralelo, um forte movimento higienista no Rio de Janeiro propagava ideias de modernização e urbanização. Esse projeto acabava contando com a demolição arbitrária de casas e cortiços do centro da cidade, expulsando as pessoas dessa região. Na ocasião, o discurso propagado era o de que tais medidas serviam para limpar a cidade, eliminar os ratos, baratas e insetos, causadores de doenças. No entanto, essa agenda política era uma maneira de alargar as vias, criar novos modelos de construção, nos moldes do gosto europeu [2]. Como consequência, a população pobre passou a se abrigar cada vez mais em morros nas margens da cidade, mudando seus hábitos e convívios sociais.

Foi neste cenário que, em 1904, sob as influências do pensamento científico e positivista europeu, surgiu o projeto de vacinação obrigatória contra a varíola de toda a população, coordenado por Osvaldo Cruz [3]. A campanha continha critérios rigorosos. Todo cidadão brasileiro teria de comprovar que tinha sido vacinado, caso contrário, poderia ser dispensado de seu contrato de trabalho, seria impedido de realizar matrículas em escolas, incapaz de emitir certidões de casamento, autorização para viagens etc. Tudo isso serviu de catalisador para um episódio conhecido como Revolta da Vacina [4].

Parte da população, já insatisfeita com a opressão sofrida, não reagiu bem à ideia de tomar uma vacina contra sua vontade. Associando a situações as quais haviam sido submetidos anteriormente, muitos suspeitavam que o governo queria exterminar as pessoas através da vacinação. Assim, diante de diversos fatores, o povo foi às ruas da capital da república a fim de protestar contra a vacina.

Curiosamente, depois de tanto tempo, vive-se no Brasil do século XXI uma nova situação delicada relacionada a questões sanitárias e de vacinação.

Enquanto vários países já estão sendo imunizados pela vacinação contra o coronavírus, o Brasil, no âmbito governamental, demorou a discutir e chegar a um consenso quanto à procedência desta ou daquela vacina, a elaborar e apresentar o plano de operacionalização da vacina contra a Covid-19. Essa situação tem por pano de fundo certo negacionismo, por parte do governo federal, em relação à pandemia causada pela COVID-19.

Assim, ao contrário do século XIX, enquanto boa parte da sociedade civil tem se posicionado para garantir a situação sanitária no Brasil, o presidente da República com seus apoiadores se mantêm contra a vacinação, incitando a população a se revoltar contra a vacina e tratando a questão como uma decisão pessoal ou individual. Ocorre que essa postura, vinda de um líder de governo, responsável por definir políticas públicas de saúde, não pode ser lida como problema pessoal, mas sim como questão nacional em defesa da vida. Afinal, este posicionamento interfere diretamente na vida da população. Há uma ação de se contrariar os saberes científicos e dificultar negociações com as empresas produtoras das possíveis vacinas, por exemplo, que prejudicam a eficácia da vacinação. Vale lembrar que o país já ultrapassou 234.850 vítimas fatais e a doença já contaminou mais 9.659.167 de pessoas, números que estão diretamente relacionados ao modo como o país tem conduzido esta situação.

Finalmente no dia 17 de janeiro, após a aprovação do uso emergencial pela ANVISA, a primeira pessoa no Brasil foi vacinada, uma enfermeira do sistema público de saúde de São Paulo, Mônica Calazans. Ela recebeu o imunizante Coronavac, desenvolvido no país, no Instituto Butantan. Apesar de ser uma boa notícia, o processo de vacinação ainda será bastante lendo e continua sendo prejudicado pelos posicionamentos do governo federal.

REFERÊNCIAS:

[1] https://portal.fiocruz.br/noticia/revolta-da-vacina-2

[2] https://www.youtube.com/watch?v=gioM2uI24fE

[3] https://brasilescola.uol.com.br/biologia/a-historia-vacina.htmFolder CAS cobertura vacinal

[4] https://www.brasildefato.com.br/2020/11/10/revolta-da-vacina-116-anos-diferencas-e-semelhancas-com-a-onda-negacionista-atual

Relembrando o começo do meu futuro

Relembrando o começo do meu futuro

Alcione Aparecida Ferreira [1]

Sou filha de Afonso Fernandes e Ivanildes Venância e irmã de Wilson Elias, quatro anos mais velho que eu. Somos campesinos e moradores da comunidade Botafogo pertencente ao município de Santo Antônio do Itambé-MG. Quando criança, adorava brincar de professora. No meu quarto, escondida dos meus pais, fazia riscos atrás da porta com pedaços de barro, pois ainda não sabia escrever, e alegremente pensava estar lecionando. Muitas vezes, na varanda, improvisava uma sala de empresa, em que eu sonhava ser secretária e, com os materiais escolares do meu irmão, riscava o papel como se fizesse anotações importantes. Meu pai sempre percebeu que eu tinha grande interesse pela escola, então, aos cinco anos de idade, deu-me um caderninho, um lápis de escrever e uma borracha. Sempre que tinha um tempinho, sentava comigo para me ensinar a escrever meu nome. Lembro-me da época em que minha casa ainda não tinha luz, e sentávamo-nos no banco da cozinha com a lamparina acesa. Meu pai lia a bíblia, e rezávamos o Terço e o Ofício de Nossa Senhora com um livrinho que eu sempre folheava.

Aos seis anos, entrei na Escola Municipal de Botafogo, como havia grande demanda de alunos e as salas de aula eram poucas, criaram turmas multisseriadas. No meu primeiro ano na escola, a professora ensinava apenas a escrever o nome, alguns números e as vogais. Nisto, eu levava vantagem, pois já sabia escrever meu nome completo. Lembro-me bem de minhas professoras, Vanir, Rosângela, Rosilene e Marielene, mas, principalmente, da primeira professora, a tia Vanir, como era conhecida. Ela sempre gostou de músicas, então colocava canções para cantarmos e dançarmos na sala de aula. As músicas de que mais gostava eram: A pulga e o percevejo, A barata, A canoa virou e Cantigas de roda.

A partir da segunda série, fazíamos pequenas redações praticamente todos os dias. Eu adorava ler as minhas para a turma e ilustrá-las, porque ganhávamos prêmios com a atividade. Os temas eram voltados à nossa imaginação e todos os alunos viajavam no universo imaginário. Eu sempre iniciava meus textos com um ‘‘era uma vez’’ para marcar o caráter fictício das histórias. Havia, também, o projeto “Semeando” cujo objetivo era valorizar a terra através de narrativas dos livrinhos dos personagens Torrãozinho e Sementinha. Ainda na segunda série, quebrei a clavícula ao correr para a catequese, ficando o braço direito engessado e preso, mas que não me impedia de fazer as atividades escritas. Minha atitude alcançou o apreço da professora que me escolheu como aluna modelo da turma. A escola tinha um quartinho com livros didáticos e de historinhas infantis dentro de um armário trancado com cadeado. Tínhamos acesso apenas aos textos didáticos. Toda semana, o supervisor fazia visitas para avaliar as leituras e os cadernos dos alunos. Adorava ler para o supervisor, Humberto Magno, pois fazíamos muitas fichas com nome da escola, da professora e do aluno. As atividades e avaliações eram mimeografadas.

Estudei o Ensino Fundamental II e o Ensino Médio na Escola Estadual Alcebíades Nunes, localizada na cidade. Lá havia uma biblioteca à disposição de todos, mas eu quase não pegava livros literários, somente os didáticos. Só fazia empréstimo dos textos literários quando o professor solicitava um resumo do livro que, em geral, eu nem lia. Só copiava e entregava. A escola promovia viagens para os alunos que mais faziam empréstimo de livros literários. Geralmente, os alunos pegavam os livros e não liam, porque não era solicitado um resumo da obra. Aos dezoito anos de idade concluí o Ensino Médio, e aos vinte anos cursei o magistério, Curso Normal em Nível Médio nessa mesma instituição. Nessa escola, tive muitas experiências, como trabalhar histórias infantis com crianças, com atividades de reconto.

Em 2018, prestei o vestibular para a Licenciatura em Educação do Campo da UFVJM e fui aprovada. A partir de então, descobri a importância da leitura, mesmo com dificuldades com textos acadêmicos. Entendo que essas leituras me ajudarão a ter um maior embasamento teórico para a realização dos trabalhos acadêmicos e, claro, para a vida. Assim sendo, avalio como positiva a mudança pela qual estou passando, pois é o que fortalecerá meu crescimento como estudante, pessoa e futura educadora do campo.

[1] Este texto é parte do ebook Memórias de Letramentos II: Outras Vozes do Campo, disponível para download gratuito aqui: https://auladigital.net.br/ebooks.

Comunidade do Paiol lança livro

Comunidade do Paiol lança livro

“Escrever é algo muito poderoso e também uma das formas mais poéticas de se expressar. Escolher sobre o que escrever pode ser um desafio, mas se a intenção é registrar algo como uma história, vale a pena pensar no motivo de querer eternizá-la. Movidos pelo desejo de registrar a história do Paiol e possibilitar o conhecimento das próximas gerações sobre seus antepassados, escrevemos o livro “Paiol: conhecendo uma comunidade quilombola”. Na obra, além da história, são apresentadas algumas práticas culturais da comunidade, atividades do cotidiano dos moradores e possibilidades de um ensino contextualizado e pautado na cultura quilombola. Esperamos que em cada página lida vocês conheçam um pouco mais da história, modo de vida e cotidiano desses remanescentes quilombolas que com muita luta e resistência têm mantido suas tradições e tentado eternizar seu legado.”

“Almejamos que este rico acervo também possa ser utilizado em escolas da comunidade e por futuras gerações que desejem conhecer um pouco mais seu território e os moradores que o constituíram.

Boa leitura a tod@s!”

 

Essas são palavras da Anne Karine Pereira Quaresma, quilombola e uma das organizadoras do livro Paiol: conhecendo uma comunidade quilombola. O livro digital pode ser baixado gratuitamente no nosso site: https://auladigital.net.br/ebooks

Impactos da Lei Aldir Blanc nas Comunidades Quilombolas do Vale do Jequitinhonha

Impactos da Lei Aldir Blanc nas Comunidades Quilombolas do Vale do Jequitinhonha

Por Ângela Gomes Freire

A Lei Federal n°14.017/2020 [1], sancionada em 29 de junho de 2020, ficou conhecida por Lei Aldir Blanc em homenagem a Aldir Blanc Mendes – compositor e escritor que morreu acometido pela Covid-19 em maio de 2020 [2]. Aprovada graças à mobilização dos trabalhadores da cultura e aos diálogos realizados junto aos (às) deputados(as) no Congresso Nacional, a lei foi criada para dispor sobre ações emergenciais destinadas ao setor cultural a serem adotadas durante o estado de calamidade pública causado pela epidemia do coronavírus.

O carioca Aldir Blanc largou a medicina para se dedicar exclusivamente à música, tornando-se um dos mais importantes compositores da música popular brasileira. Autor de vasta obra musical e literária, ficou também conhecido no meio artístico por criar e integrar associações ligadas à defesa dos direitos autorais. Publicou vários livros, além de contribuir com crônicas para os jornais O Dia, O Estado de São Paulo e O Globo. Seu legado também foi deixado na televisão através das trilhas sonoras de abertura de novelas e séries.        

A Lei Aldir Blanc destina recursos públicos para ações emergenciais de apoio ao setor cultural por meio de programa de renda emergencial; subsídio mensal para manutenção de espaços artísticos e culturais, microempresas e pequenas empresas culturais, cooperativas, instituições e organizações culturais comunitárias que tiveram as suas atividades interrompidas por força das medidas de isolamento social; e chamadas públicas por meio de editais ou prêmios para realizações de atividades artísticas que possam ser transmitidas pela internet ou disponibilizadas por meio de redes sociais e outras plataformas digitais.

Os recursos para a aplicação da lei são oriundos do Fundo Nacional de Cultura através de transferência da União para estados e municípios.  Enquanto os estados são responsáveis pelo pagamento da renda emergencial, os municípios fornecem subsídio mensal aos espaços culturais. Ou seja, tanto os estados quanto os municípios têm que elaborar e publicar editais, chamadas públicas ou prêmios. Porém, os repasses feitos pela União estão vinculados à apresentação e aprovação de um plano de implementação desses recursos com a participação da sociedade civil no acompanhamento, fiscalização e construção do plano de implementação.

Em Minas Gerais, a Secretaria Estadual de Cultura e Turismo (SECULT), por meio de sua equipe gestora, lançou 27 editais, amparando assim os mais variados setores culturais da capital e do interior através da música, dança, circo, teatro, performance, artesanato, fotografia, literatura, memória, culturas populares e tradicionais, artes visuais e digitais etc. Cabe destacar que o valor total destinado à Lei Aldir Blanc de Minas Gerais (LABMG) foi de mais de R$ 155 milhões, somados os recursos de Estados e reversão de municípios. [3].

O Edital nº27/2020, referente ao credenciamento de culturas populares e tradicionais, previa um valor bruto total de R$ 20.711.600,00, distribuídos para aqueles que se inscrevessem como pessoas físicas maiores de 18 anos, em nome próprio ou representando grupos ou comunidades, com residência ou domicílio em Minas Gerais, com cadastros homologados pelo Estado e validados pelo Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (IEPHA-MG) nas seguintes categorias: I) Praticantes ou mestres, compreendendo violeiros(as), fazedores(as) de viola artesanal e mestres de capoeira; II) grupos ou coletivos, compreendendo as Folias, os Congados e o Jongo; e III) comunidades, compreendendo comunidades quilombolas, comunidades de apanhadores(as) de flores sempre-vivas, povos indígenas e outros povos e comunidades tradicionais.

Do Médio Jequitinhonha, destaca-se a experiência da Comissão das Comunidades Quilombolas do Vale do Jequitinhonha (Coquivale) [4] – organização não governamental, cujo objetivo é a unificação das comunidades quilombolas do Vale do Jequitinhonha na luta por políticas públicas de direito, reconhecendo as dificuldades logísticas e tecnológicas dos grupos e comunidades tradicionais. Os diretores da Coquivale decidiram apoiar os interessados em se inscrever no edital, preenchendo formulários, inserindo dados com consentimento dos seus líderes ou responsáveis pelos grupos ou associações quilombolas.  

Sobre o assunto, eu tive uma conversa com o presidente José Claudionor dos Santos Pinto que trouxe notícias diversas da Coquivale e de todos os envolvidos. Segundo José Claudionor, cerca de 80 comunidades foram contempladas nesse edital. Porém, para isso, a diretoria teve que realizar uma força-tarefa para inscrever grupos e comunidades. A vice-presidente, Rosária Costa Pereira, que inscreveu aproximadamente 24 comunidades, declarou que foi a primeira atividade dessa natureza que realizou. Além disso, a vice-presidente revelou seu apreço pelo envolvimento nesse tipo de trabalho participativo.

O presidente da Comissão das Comunidades afirmou que ainda é um desafio o manuseio e o domínio da ferramenta tecnológica. Para ele, o edital publicado foi simples, mas trazia complexidade no seu entendimento em questões como a execução dos recursos. Ademais, a inadimplência dos membros das associações, enquanto pessoa física, trouxe grandes preocupações, era impeditivo para se receber os recursos. Tiveram, assim, que encontrar soluções rápidas e a saída foi indicar outro membro da comunidade, envolvido no processo, para receber o recurso, o que não foi tão fácil tendo em vista que os processos burocráticos não são de domínio de todos.

As notícias trazidas da Coquivale são de que os diretores das associações disseram ter servido com amor e dedicação nessa árdua tarefa, visto que tiveram a oportunidade de interagir com as pessoas mais velhas das comunidades. Exemplificaram que puderam ensinar a elas coisas simples como tirar foto no celular, realizar um compartilhamento e postar um documento. Como havia comunidade que nunca recebeu recurso público antes, eles revelaram grande satisfação por essa oportunidade, uma vez que tinham vontade de realizar pequenas reformas na sede, reformar indumentárias e adquirir instrumentos para os grupos.

Outro ponto que os diretores consideraram relevante foi a integração com o IEPHA-Instituto Estadual de Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais, pois os municípios, através das prefeituras, tinham cadastrado algumas áreas de cultura tradicionais, como foliões, mestres de capoeira, mas não tinham retorno quanto a esses cadastros. Agora, em decorrência da Lei Aldir Blanc, para validar as inscrições, foram tomados como referência listagens, mapeamentos e cadastros de órgãos públicos estaduais e federais vinculados às categorias. Segundo os diretores, essa ação possibilitou o reconhecimento do patrimônio cultural imaterial.

O secretário de Estado de Cultura e Turismo de Minas Gerais, Leônidas Oliveira, ressaltou a importância do alcance da Lei Aldir Blanc por todo o território mineiro. O secretário enfatizou: “Temos feito um grande esforço para que os recursos da Lei Aldir Blanc cheguem até os povos e comunidades tradicionais de Minas Gerais. Neste processo de credenciamento, todas as comunidades e povos tradicionais podem e devem se inscrever, basta comprovar a atividade conforme explicado no edital. Queremos atender, sobretudo, esse público que não esteve e não está normalmente nas linhas de fomento tradicionais do Estado brasileiro, para garantir o recurso e, em maior escala, a salvaguarda da cultura fundamente em Minas, que é a cultura dos povos e comunidades tradicionais” [5].

Enquanto isso, os municípios se organizaram, de acordo com o entendimento a nível local, acatando principalmente as orientações das suas assessorias jurídicas. Porém, muitos municípios que nem sempre têm uma pasta exclusiva da cultura que, em diversos casos, é dividida com a educação, turismo e esporte, irão receber valores nunca vistos e com uma equipe reduzida para operar toda a burocracia. No entanto, comissões foram montadas para que assim tivessem maior êxito no propósito de atingir o objetivo que a lei prevê assim como suas peculiaridades.

Foi um momento dificílimo para os municípios, porque, além da pandemia, a execução da lei coincidiu com o período eleitoral. No entanto, foi interessante observar que a Lei Aldir Blanc possibilitou trazer o debate para os gestores públicos de cultura quanto à importância da implementação e regulamentação do Sistema Nacional de Cultura. Criado em 2012, esse instrumento tem como objetivo fortalecer as políticas públicas de cultura por meio de uma gestão compartilhada entre estados, municípios e a sociedade civil para ampliar a participação social e, principalmente, garantir ao cidadão o pleno exercício de seus direitos culturais.

REFERÊNCIAS

[1] https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/lei-n-14.017-de-29-de-junho-de-2020-264166628

[2] https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2020/05/04/aldir-blanc-compositor-e-escritor-morre-no-rio.ghtml

[3] http://www.cultura.mg.gov.br/component/content/category/121-lei-aldir-blanc?layout=&Itemid=437

[4] https://www.facebook.com/COQUIVALE-Comiss%C3%A3o-das-comunidades-quilombolas-do-Vale-Jequitinhonha-1672046863020304/

[5] https://portalamm.org.br/lei-aldir-blanc-edital-da-secult-disponibiliza-mais-de-r-20-milhoes-para-a-cultura-popular-de-minas-gerais/

Práticas de letramento e superações

Práticas de letramento e superações

Por Airton Alves Chaves Junior [1]

Durante parte de minha infância não tive oportunidade de ter acesso a práticas de leitura, pois meus pais não sabiam ler e não tinham nenhum livro que pudesse influenciar meu processo de aprendizagem. Em minha casa havia apenas um rádio antigo, através do qual meu pai ouvia os jogos de futebol. Este hábito de meu pai me beneficiou, porque eu tentava entender o que era ali narrado para os ouvintes. Na comunidade onde morro não tinha escola, assim era muito difícil para os moradores terem acesso ao ensino. Meus irmãos não tiveram oportunidade de ir à escola, porquanto não tinham condições de custear as despesas ou até mesmo o deslocamento até o município em que se localizava a escola. Para irem de ônibus, teriam que andar muito, assim escolheram trabalhar na roça para ajudar as necessidades da família.

Aos sete anos, ingressei na escola, mas também tive dificuldades em função do deslocamento da minha comunidade, que fica na zona rural, até à escola, que se localizava na cidade de Cristália. Eu saía de casa às 8 horas e só chegava à escola por volta das 12 horas. Nessa época, eu não tinha conhecimentos sobre letras ou números, mas desde novo já tentava ler as palavras ou números que via nas ruas da cidade. Aos poucos fui aprendendo na prática e, assim, comecei a desenvolver minha escrita, incentivada apenas pelo professor, que passava historinhas, como a dos Três porquinhos, para facilitar o aprendizado.

Além das dificuldades de acesso à escola, também precisava trabalhar com meu pai nas lavouras de feijão. Depois da colheita, o produto seria vendido para custear meus materiais e uniformes, produto difícil para adquirir.

Na escola, os problemas mais frequentes eram relacionados às tarefas que os professores passavam como atividade extraclasse. Como meus pais não eram alfabetizados, não era possível que me ajudassem, sendo assim, quando eu não conseguia fazer sozinho as atividades, voltava para as aulas com a tarefa sem fazer, na maioria das vezes. Sempre tentava fazer as tarefas enquanto estava na sala de aula para contar com a ajuda do professor. Com auxílio da escola, que possuía vários professores capacitados, pude ter um bom desenvolvimento da leitura e, assim, ajudar minha mãe a ler a Bíblia, que é de suma importância para ela.

Ao passar para o Ensino Médio ainda tive dificuldades por causa das atividades e leituras que eram passadas e que estarem fora do meu contexto de minha vida, ou seja, tudo que era passado não estava relacionado à minha forma de aprendizagem anterior.

Nas atividades desenvolvidas, o professor buscava livros na biblioteca e nos passava apenas resolução de atividades, o que não estimulava a leitura. Além disso, para ter acesso a um livro havia burocracias que nos faziam desistir, pois teríamos que preencher vários formulários para levar o livro para casa. Já no terceiro ano do Ensino Médio, busquei outras fontes de estudos, como a internet, para aprimorar meu desenvolvimento nas matérias. Isto contribuiu para importantes mudanças no meu modo de pensar e escrever.

Fiz o vestibular da Licenciatura em Educação do Campo ainda cursando o terceiro ano do Ensino Médio, o que me ajudou e incentivou a manter o foco e continuar os estudos. Ao ingressar na universidade, deparei-me com algumas dificuldades, pois na escola em que estudei não nos exigiam a leitura de texto de mais de 20 páginas, e as práticas de escritas eram descontextualizadas: nas redações, por exemplo, não havia uma estrutura a seguir e nem uma necessidade de interpretação textual.  Nesta nova rotina de leitura, obtive novos conhecimentos essenciais para meu processo de aprendizagem, uma vez que passei a ter uma visão crítica em minhas leituras.

Na graduação, atualmente, leio textos indicados pelos docentes – que, aliás, julgo serem muitas. Às vezes, o tempo curto e os textos difíceis de interpretar acabam me prejudicando, pois não consigo fazer todas as leituras propostas pelas disciplinas. Não posso, porém, deixar de mencionar um dos textos com o qual me identifico bastante, “Cultura Camponesa”, de José Maria Tardim, voltado para as culturas e tradições do homem camponês.

Apesar de todas as dificuldades enfrentadas, percebo a importância da leitura em minha vida. Através dela, encontramos novas estratégias de resistência, novas possibilidades de interpretação do mundo, já que somos seres compostos de ideias, sonhos e posições críticas.

[1] Este texto é parte do ebook Memórias de Letramentos II: Outras Vozes do Campo, disponível para download gratuito aqui: https://auladigital.net.br/ebooks