Memórias de Letramento

Márcia lendo junto a livros. 2021. Fonte: Arquivo Pessoal.

Márcia Martins de Vasconcelos –

Aprendi a ler aos seis anos de idade, ainda no primeiro ano da educação básica. Sempre gostei de ler, sendo que meus livros preferidos são os romances. Na minha infância não tive muitos livros, mas os que tinha eu aproveitava ao máximo. A leitura era o meu escape de tantas dificuldades que eu e minha família tínhamos. Às vezes lia para meus sobrinhos e para alguns colegas da turma que ainda não sabiam ler. Atualmente os livros são mais acessíveis, pois estão disponíveis virtualmente, porém eu prefiro poder tocá-los, sentir o cheiro deles etc. Prefiro romance aos textos científicos, mas faço uso de ambos. 

Para mim, ler é poder viajar no tempo e no espaço a qualquer momento. Alguns dos motivos pelo qual escolhi estudar a linguagem foram tanto o interesse em conhecer mais sobre as variações da língua brasileira como também o desejo de conhecer melhor as origens ou teorias da nossa literatura. Como possível futura educadora, anseio um currículo diversificado, a partir do qual o professor tenha autonomia para mostrar aos alunos essas variações linguísticas e não simplesmente repassar conhecimentos que sequer passam por sua análise ou escolha. Nesse sentido, não gostaria de trabalhar somente com o conteúdo dos livros didáticos. 

O ensino remoto me obrigou a mudar a rotina. Antes da pandemia, durante o período de Tempo Universidade (TU), em que costumávamos ter atividades presenciais em Diamantina-MG, tínhamos todo o tempo dedicado às aulas. Atualmente temos que dividir o tempo entre trabalho e estudo.  O ensino em alternância, como era antes da pandemia, favorecia nossas atividades de estudo. O TU com aulas presenciais e o contato com várias pessoas e culturas facilitavam o aprendizado. Além de compartilharmos conhecimentos, culturas e a rotina do curso, a presença dos colegas na sala de aula nos tranquilizava diante das dificuldades, especialmente as relacionadas com o curso.

Estou um tanto perdida com esse ensino remoto, me sinto triste por mim e pelos meus colegas que estão vivendo situação semelhante a minha e a quem na maioria dos casos não posso ajudar. Estou ainda tentando organizar as atividades e conciliar trabalho e estudos. Nem sempre consigo cumprir os prazos para entrega das atividades e não estou conseguindo ler os textos indicados. O que dificulta é o fato de eu não ter internet e computador em casa, pois gasto mais tempo para realizar as atividades e para assistir a aulas, e principalmente gasto muito mais tempo para fazer os trabalhos pelo celular. Às vezes penso em desistir do curso, pois com o ensino remoto sempre tenho que ficar sem trabalhar para ter tempo de assistir às aulas e realizar os trabalhos do curso.

As aulas via internet, por videoconferência, não são tão legais quanto as presenciais. São formas de substituir as aulas presenciais, porém são ineficientes diante da falta de estrutura em que nós discentes nos encontramos. Não consigo me concentrar e acabo tendo dificuldade de aprender, além do fato de que às vezes assisto as aulas em algum ponto que eu possa usar wifi, que, na maioria das vezes, é na rua, em que o movimento e barulho me desconcentram. Quanto a leituras a serem realizadas para a universidade, eu baixo da internet para poder ler à tarde, quando chego do trabalho.

Apesar dos problemas citados acima, aprendi muito nesse processo. Tive que me acostumar a usar várias ferramentas e plataformas como o Google Classroom, a aprender a fazer os trabalhos pelo celular, a reorganizar minha rotina etc. Tudo isso são práticas de letramento. Tive apoio dos professores durante todo o processo, mas da universidade não vejo apoio em relação às dificuldades do ensino remoto. Ressalto também que os colegas do curso têm auxiliado muito. Durante as aulas de Estudos de Letramento entendi que letramento não acontece só na sala de aula (presencial ou virtual), e tudo que vivenciamos e aprendemos ao longo da vida pode envolver uma forma de letramento, algo que não depende de um diploma. 

OUTRAS CONSIDERAÇÕES

Ao refletir sobre letramento nesse TU, entendi que ser letrado não significa necessariamente ser formado na academia e que há cidadãos letrados sem sequer ter frequentado a escola. Essa percepção me ocorreu durante uma conversa com um senhor morador da minha comunidade. Para o senhor Joaquim, o letramento é relativo à capacidade de aprender e executar tarefas diversas e de vários níveis. Ao ouvir isso, fiz uma busca na minha memória e percebi que inúmeras tarefas para as quais o mercado de trabalho exige formação acadêmica são executadas por pessoas sem essa escolarização. E algumas dessas tarefas são executadas até mesmo por analfabetos. 

A partir do texto de Street (2014), podemos também pensar que o significado do termo não é algo dado por fixo ou definitivo. O autor considera que a própria prática de letramento e suas implicações variam com o contexto social. (Street, 2014, p.40):

  • A teoria atual, portanto, nos diz que o letramento em si mesmo não promove o avanço cognitivo, a mobilidade social ou o progresso: práticas letradas são específicas ao contexto político e ideológico e suas consequências variam confirme a situação. (Street, 2014, p.41).

O letramento é um processo coletivo que ocorre ao longo da vida e é decorrente das nossas práticas cotidianas, não apenas na escola. Somos sujeitos pensantes, portanto somos aptos à aprendizagem a todo tempo. O que ocorre é que a escola “molda” cidadãos para fins diversos, por exemplo, para o mercado de trabalho. Assim, alguns saberes, práticas e sujeitos passam a ser mais valorizados que outros. O que ocorreu e ainda ocorre especialmente no campo é uma desvalorização do saber popular e das culturas ali presentes. Em contrapartida, destacam-se “valores” como diplomas e classe social. 

Uma vez que a escola historicamente forma cidadãos para “obedecer” a partir de critérios criados pela elite, ainda vemos reflexo dessa lógica em vários momentos, embora o acesso à academia tenha sido ampliado para a classe pobre e sujeitos do campo, como na LEC.  Vejamos em  Magnani e Castro (2019) alguns fatores que podem contribuir com essa desvalorização: 

  • O ponto é que, em sua grande maioria as universidades do Brasil, sabidamente as maiores produtoras de saber científico do país, localizam-se em centros urbanos. Assim, ainda que possam absorver sujeitos oriundos de comunidades rurais, seu funcionamento, seu local de produção, a realidade cotidiana empírica, os índices de produtividade aos quais estão sujeitos, entre outros fatores, tendem a atravessar a produção científica realizada, reiterando a atenção para contextos urbanos. Entre outros fatores, essa condição pode ajudar a explicar um descompasso entre variadas reflexões acadêmicas ou propostas pedagógicas que partam do uso (ou de certos usos) de certas tecnologias e estruturas e as realidades de muitas escolas e comunidades do campo. (MAGNANI; CASTRO 2019 p. 63,64)

Um desses momentos recentes em que essa lógica assimétrica pode ser conferida diz respeito às políticas públicas ligadas à educação em resposta à pandemia da covid-19. As instituições nos obrigam ao ensino remoto, porém não nos dão estrutura para tal, como se a universidade esperasse que todos os alunos tivessem a estrutura necessária para um processo ensino/aprendizagem de qualidade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

MAGNANI;CASTRO. Práticas letradas, tecnologias e territórios: transgredindo relações de poder. Curitiba. Revista X.2019.p.63,64.

STREET. Trazer os letramentos para a agenda política. Cap.1 In. STREET. Letramentos Sociais. São Paulo. Parábola Editorial, 2014.

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