Letramentos e Tecnologias na Pandemia

– Elizete Pires de Sena-

Elizete em Diamantina

Moro na comunidade Passa Sete, município de Conceição do Mato Dentro- MG. Vivo com meu irmão e também com meus pais que, apesar de já serem aposentados, seguem trabalhando com agricultura voltada ao consumo próprio familiar, trabalho em que eu e meu irmão ajudamos quando possível. Na minha casa, só eu estou estudando.

Meu irmão e eu temos celulares, minha mãe está sem celular no momento, pois o que ela tinha, estragou. Como ela tem dificuldade de mexer com celular digital, meu irmão e eu estamos ensinando-a. Com essa pandemia e o ensino remoto, eu tive que comprar um celular com maior memória para meus estudos. Dessa forma, irei passar o meu antigo para ela. Na minha casa tem um notebook o qual até então somente eu uso para estudar, mas, como meu irmão vai começar a trabalhar, ele irá precisar do aparelho também. Assim, será necessário que busquemos uma organização para a divisão do uso.

Uma das mudanças na minha rotina foi o estudo de forma remota, que demandou e ainda tem demandado adaptações. Devido a essa realidade, tive que colocar internet na minha casa. É internet rural, às vezes falha, entretanto, está me ajudando muito, pois, quando na minha casa não tinha internet, eu ia em um morro onde pega internet móvel, e eu só conseguia acessar pelo celular e não dava para subir lá todos os dias. Ou seja, se eu não colocasse internet em casa, não iria conseguir fazer nada do que estou fazendo, pois constantemente tem algo para fazer que demanda internet. E, com as aulas remotas, estou tendo que aprender a lidar com essas novas ferramentas de comunicação, como por exemplo o Google Sala de Aula, o Google Meet, entre outras plataformas virtuais.

Tudo isso intensificou bastante, ainda, minha prática com o celular e com notebook. Além do curso, estou em um projeto da UFVJM no qual eu sou bolsista cujas atividades estão acontecendo remotamente. Somam-se a isso as atividades do movimento e as demandas (pautas) aqui da comunidade que estão podendo ser mobilizadas online, das quais estou participando. Sobre a comunidade, vale observar que há muitas pessoas trabalhando na mineração, em fazendas e em outros serviços, como o de pedreiro, porém, quem é do grupo de risco e está fixado na empresa de mineração, está em casa.

Tanto na minha comunidade quanto nas outras comunidades atingidas, a pandemia fez com que ficasse mais difícil de nos organizarmos para movimentos de luta por direitos e contra o avanço do modelo predatório de mineração que tanto afeta a vida e o cotidiano de moradores de regiões mineradas. Antes da pandemia, todas as atividades que os atingidos faziam eram presenciais e, atualmente, muitas coisas não são possíveis de serem feitas virtualmente. Além disso, muitas pessoas não possuem celulares e/ou acesso à internet.

A pandemia modificou bastante também a nossa forma de lazer. Como nós aqui da comunidade temos o costume de passear nas casas dos vizinhos, fazer festas entre outras coisas, algumas coisas se alteram por causa da pandemia, pois já não podemos fazer isso. Hoje, jogamos baralho (de preferencialmente o truco), assistimos televisão, ouvimos rádio, coisas que já fazíamos antes, porém dentro de casa. Além disso, como meus pais são do grupo de risco, eu passei a fazer todas as atividades as quais são necessárias ir à cidade, como fazer compras, pagar as contas, entre outras coisas.

ESTUDAR EM TEMPOS DE PANDEMIA

Desde a volta do TU (março de 2021) até o momento de escrever este texto (abril de 2021), estávamos tendo apenas uma disciplina na universidade, “Estudos do Letramento”. Assim não tive muitas dificuldades para participar das atividades. A dinâmica das aulas esteve bem tranquila, de um modo que estou conseguindo me organizar. Às vezes, a dificuldade que tenho é que, quando a internet fica lenta, ao ponto que eu não consiga entrar na plataforma Moodle, onde estão as atividades, eu preciso subir o morro próximo a minha casa, em que há acesso a internet através dos dados móveis pelo celular.

Para eu assistir a um a um documentário demandado pela disciplina, tive problema também com internet lenta. Como sempre, no horário, a partir da meia-noite, o acesso melhora, e assim pude assistir nesse horário. Sobre o aprendizado, pensei que iria ser muito difícil, pela questão de não ser presencial como era no período de 2019/2 e 2020/1. Até o momento, no entanto, estou conseguindo aprender e entender bastante do que está sendo proposto e falado na disciplina. Apesar de ter que ficar muito mais tempo ligada no celular e no notebook, estou me adaptando a essa rotina, mas sentindo muita falta dos estudos presenciais, dos colegas, e do ensino presencial que acredito ser muito mais didático.

Nas aulas presenciais, para as leituras dos textos indicados pelos professores, meus amigos e eu líamos juntos, pois era uma forma de um ajudar o outro, tirar dúvidas, etc. Nesse momento, à distância, não conseguimos mais fazer isso, pois cada um tem sua rotina e, com isso os horários não batem. Há vezes em que apenas pelo whatsapp comentamos sobre as leituras propostas. As aulas presenciais envolviam também atividades práticas, em espaços como a biblioteca e o pavilhão de auditórios da universidade, além de trabalhos de campo diversos. Além das aulas por teleconferências, por enquanto, tivemos como tarefa assistir ao documentário “Leituras de um Analfabeto” e ao episódio “NOSEDIVE” da série “Black Mirror”, o que considero como aulas práticas, igual tínhamos no pavilhão de auditórios onde todos ficavam reunidos, porém, hoje, com a pandemia, cada um na sua casa.

Sobre os aplicativos tecnológicos que estamos usando bastante nesse período de aulas remotas, eu já tinha conhecimento do Google Meet, pois antes de começar o TU já participava de reuniões através dele. Sobre o Moodle, eu aprendi algumas coisas que eu não tinha conhecimento, como a execução de atividades dentro de um fórum da própria ferramenta Moodle, em que é possível comentar as atividades dos outros. Eu pensava que a plataforma era apenas para enviar trabalhos já finalizados diretamente aos docentes. Um aplicativo que também está sendo usado nesse período de aulas remotas é o Google Sala de Aula, eu ainda tenho um pouco de dificuldade em trabalhar com ele, entretanto, quando as demais aulas começarem, acredito que irei aprender bastante.

REFLETINDO SOBRE O PROCESSO

A pandemia do coronavírus chegou ao Brasil em 2020, e se espalhou de forma muito rápida. Devido a isso, a partir do dia 15 de março de 2020, foi decretado quarentena em todo país. Sendo assim, muitas pessoas passaram a ficar mais dependentes das tecnologias, seja para trabalhar, estudar, etc. Porém, os moradores dos territórios rurais têm muita dificuldade de acesso à internet. Conforme apontam Fornasier; Scarantti, (2017), aproximadamente 85% da população que mora no campo está excluída digitalmente (p.135).

Na minha comunidade, e acredito que isso também ocorra em muitas outras comunidades rurais, nesse período de pandemia a comunicação e a organização para as lutas e debates das pautas que demandam o território, ficaram muito complicadas. Isso porque não é possível realizar encontros presenciais devido ao distanciamento social, necessário por causa da pandemia. E, por outro lado, muitas das pessoas não tem acesso aos meios de comunicação e redes sociais. Segundo Magnani e Castro (2019), muitas práticas e formas de interagir com a tecnologia não são comuns ou, por vezes, possíveis a muitos sujeitos de comunidades do campo brasileiros. Para os autores, isso pode ocorrer não só devido a falta de internet de qualidade, mas também, por exemplo, quando não se tem domínio de praticas letradas necessárias(p.62).

Com a pandemia, deixamos de fazer muitas coisas que fazíamos antes, o que está sendo muito ruim, pois tínhamos o costume de receber visitas, fazer passeios, ir em festas. Muitos dos nossos lazeres eram saindo de casa, como ir para o rio, para o bar, ir às igrejas. Isso não sendo possível, assim, passamos mais tempo assistindo televisão, ouvindo rádio, mexendo no celular, com uma maneira de nos ocuparmos. Mas, também para nós que moramos na roça e criamos animais, trabalhamos com a agricultura familiar. Como diz Tardim (2012),“a agricultura traduz, sem equívoco, uma relação humano–natureza marcada pelo sentido de forte conexão, de pertencimento, de ato transformador e criador, uma relação fundada no cuidado”. (p. 181).

Nesse período de pandemia, além de ser nosso trabalho, a agricultura e a criação de animais se tornou, para a minha família, e acredito que para outras famílias que vivem em territórios rurais, uma forma de distração e de manter a mente ocupada. E, por outro lado, uma forma muito interessante de aprender com meus pais sobre o trabalho na terra, escutar sua leitura de mundo, suas percepções e seus olhares. Leitura de mundo esta que, como descreve Freire (1989), vem de um contexto onde as palavras, as letras eram através dos cantos dos pássaros, das fases da lua, do período da chuva, do formato da folha e da fruta para identificar a espécie, olhar as horas através do sol, das estações do ano entre outros.

Como o ensino remoto mudou bastante coisas, muitas pessoas, assim como eu, tiveram que comprar aparelho celular novo para conseguir atender às demandas do ensino remoto, tiveram que colocar internet, entre outras. E o aprendizado de forma remota, por ser diferente do que estávamos acostumados, trouxe para nós estudantes e, acredito que para os professores também, muitos desafios a serem superados. Braga e Vóvio( 2015) falam sobre a articulação entre desigualdade social e escrita, em que o acesso pode ser, muitas vezes, um privilégio de classe. Sobre as tecnologias digitais também, não é diferente, pois, por mais que o acesso tecnológico digital hoje em dia está mais amplo e acessível para todas as classes sociais, ainda há muita desigualdade.

O acesso a tecnologias digitais na zona rural e até mesmo em periferias da grandes cidades é muito deficitário. Isso sem contar que muitas pessoas desse grupo social não têm condições de comprar um celular, um notebook dos melhores e colocar uma internet ótima, que são dispositivos muito caros para boa parte da população. Ou seja, os mais privilegiados em termos de acesso e uso de tecnologias digitais são as pessoas de classe dominante, enquanto as demais têm muito mais dificuldades ao lidar com o ensino a distância.

Por mais que muitos estejam se adaptando bem, aprendendo e entendendo as disciplinas, o ensino não é a mesma coisa de quando era no presencial, pois muitas das vezes a gente fica mais disperso. Por exemplo, antes fazíamos grupos de leituras com os amigos, e, hoje, como é possível apenas pelas redes sociais, acaba não sendo a mesma coisa, pois os horários não batem. Em contextos normais, não pandêmicos, as aulas presenciais ocorrem em Diamantina, no TU, e ficamos por conta somente dos estudos. Na pandemia, por outro lado, além das aulas e atividades da faculdade, foi necessário muitas vezes conciliar com o trabalho. Com essa situação, não é mais possível estar apenas por conta dos estudos. E se a pessoa não se esforçar, principalmente para conseguir participar das aulas síncronas, fica prejudicado o aprendizado.

Esses desafios que estamos enfrentando e aos quais precisamos nos adequar, também são formas de continuarmos estudando. Além disso, essa situação nos levou a ter algumas novas práticas de letramento, como aprender a lidar com as aulas por teleconferências,e, principalmente, a usar alguns aplicativos tecnológicos, dos quais muitos não tinham conhecimento.

REFERÊNCIAS

BRAGA, D, B; VÓVIO, C, L. Uso de tecnologia e participação em letramentos digitais em contextos de desigualdades. São Paulo, Cortez, p. 33-65, 2015.

FORNASIER, M, O; SCARANTTI, D, R. Internet no Campo: Direitos Humanos e Políticas Públicas de Inclusão Digital. Revista Extraprensa, v. 10, n. 2, p. 133-152, 2017.

FREIRE, P. A Importância do Ato de Ler. 23. ed. São Paulo, Cortez, 1989.

MAGNANI, L, H; CASTRO, C, H, S. Práticas Letradas, Tecnologias e Territórios: Transgredindo Relações de Poder. Revista X, Curitiba, v. 14, n. 5, p. 56-81, 2019.

TARDIM, J, M. Cultura Camponesa. In: CALDART, R, S. et al. (orgs.). Dicionário da Educação do Campo. Rio de Janeiro; São Paulo: Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, Expressão Popular, p.180-188, 2012.

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