Por Isaura dos Santos Lopes [1]
Tenho dezenove anos, nasci e vivo ainda hoje na Comunidade Quilombola do Suaçuí, zona rural do município de Coluna, Minas Gerais. Sou filha de Seu João Cardoso e de Dona Lozinha: ele é conhecido por suas histórias e causos, e ela pela sua determinação, pela quantidade de filhos que teve e pelo modo de trazê-los ao mundo. Eu, assim como meus irmãos, nasci em casa mesmo, em função das habilidades de minha mãe, que era parteira. Sou a última dos oito filhos a nascer na propriedade de meu pai, que ficava no extremo da comunidade. Após meu nascimento, minha família se mudou para a propriedade de minha mãe, mais ao centro da comunidade e próxima de onde hoje estão a igreja e a escola.
Lembro-me, com certa ternura, que antes de iniciar o pré-escolar já sabia juntar as letras e a formar palavras. Isso se deve à ajuda de minhas duas irmãs mais velhas, que sempre me ajudavam. Também já conhecia alguns números, as cores e amava desenhar. Desde pequena, com cerca de três anos, já brincava de escolinha com minhas irmãs e amigos, mas apenas quando eles tinham tempo, pois a lida da roça era dura. Era um momento mágico para mim, pois, naquele momento, estava realizando, mesmo que no universo do ‘‘faz de conta’’, o adorado sonho de ir à escola. Esses momentos não tiraram de mim o desejo de frequentar regularmente a escola.
Meus pais, ambos lavradores e semianalfabetos, mesmo cientes que eu já sabia ler e escrever, não dispensaram a necessidade de que eu e meus sete irmãos fôssemos à escola. Minha mãe sabia apenas escrever seu nome, mas sempre foi curiosa e nos pedia para que lêssemos para ela os bilhetes que a escola mandava, a bíblia e até nossos ‘‘para casas’’. Ela sempre nos incentivou a estudar e não apenas na escola. Seu maior desejo era se alfabetizar, tanto que, mesmo depois dos cinquenta anos de idade, ela se matriculou no programa Educação de Jovens e Adultos (EJA), e sempre destacava a importância de saber ler e escrever. Sua postura sempre me fomentou minha vontade de frequentar a escola.
Na minha infância foi marcada pela leitura e por um gosto especial pelas narrativas, o qual sofreu influência das narrativas das vivências, viagens e experiências em outros estados brasileiros e até fora do país de meu pai. O que eu mais gostava, dos poucos momentos que desfrutávamos juntos, eram suas narrativas sobre o “Sr. Coelho e a Dona Onça”. Eram histórias que eu ouvia sempre na hora de dormir, pois não tínhamos, em casa, acesso a mídias, como a televisão, por exemplo. Quando não nos deliciávamos com as histórias que meu amado pai trazia, ouvíamos os seus discos, alguns com histórias também, como o “Buc Sarampo”, o mais ouvido por nós. Achava tão legal ouvir histórias, que as passei a contá-las para meus sobrinhos e outras crianças com quem tive contato quando mais velha.
Meu pai, pelo exercício da construção civil, além de bom contador de histórias, era excelente matemático, era rápido nos cálculos mentais e, além de resolvê-los, exemplificava-os de maneira simples. Talvez por isso, eu me identificasse também com os cálculos, que eram, e continuam sendo, uma de minhas grades paixões, juntamente com a leitura de poesia e de contos. Por isto, sempre me dedicava às provas da OMBEP, com gosto e desejo de passar para a próxima fase. De fato, passei algumas vezes. O contato com livros do acervo da biblioteca da escola Estadual Padre João Clarimundo, em que cursei o Fundamental II e o Ensino Médio, era, na maioria das vezes, com textos infantis, alguns para coleta de dados e para o treinamento de referências bibliográficas. Mas o contato com o acervo da biblioteca municipal em que minha madrinha de batismo trabalhava, e com quem eu passava bastante tempo, sobretudo para fazer as reuniões de trabalhos em grupo, mas também nos dias de visitá-la, propiciou-me o acesso a diversos autores e temas. Isto me levou a ler cada vez mais e melhor. Também me inspirei nesses textos para criar poemas e contos, nos quais registrei/ representei fatos marcantes de minha existência. Desses, gostei mais do que fiz, juntamente com uma de minhas irmãs, para uma brincadeira de confraternização. O conto recebeu o nome ‘‘O pereroi do brejo’’: contava a história de um de meus irmãos, quando ele e minha mãe chegaram de Belo Horizonte, aonde iam regularmente por causa de um problema crônico de saúde dele. A situação virou, naquele momento, uma brincadeira e foi contada como história de ninar para os filhos de minha irmã.
Tive a oportunidade de acompanhar duas edições do programa Cidadão Nota 10, que visava alfabetizar jovens e adultos, em aulas noturnas ministradas por voluntários. O projeto contemplou minha comunidade quando, possibilitando que meus pais frequentassem as aulas. Eu sempre ia junto com eles, e pude ter contato com um ensino diferente do que eu recebia na minha escola. Minha irmã foi uma das voluntárias, e eu a ajudava a corrigir exercícios e a orientar os alunos.
No último ano do Ensino Médio, conheci a Licenciatura em Educação do Campo (LEC) da UFVJM, e, pensando no que aprendi na infância e adolescência, curiosa e ansiosa por questionar e descobrir as respostas do mundo, lancei-me nessa experiência, que até o momento tem sido enriquecedora. Na LEC, comecei a ler textos científicos e a ter contato com um vocabulário mais vasto e difícil que, entretanto, não me impedem, de ler meus amados poemas, contos e romances. Sempre trago para o Tempo Universidade livros de meu conterrâneo, Carlos Herculano Lopes, escritor com quem tive o prazer de me encontrar quando criança em um evento de incentivo à leitura em minha comunidade, e, em outra vez, na escola estadual em que estudei, em um evento de recital de poesias.
Por tudo isto, sou hoje uma pessoa que ama leitura, mas que não se isola nela, pelo contrário, busco sempre algo mais, busco dar sentido à vida e entender o mundo, aprendendo coisas novas, mas sem perder minhas origens.