Construção dos meus letramentos: da infância à universidade

 

Aprender a “ler o mundo”, como dizia Paulo Freire, significa compreender os contextos e localizar-se no espaço social mais amplo, por meio da relação entre a palavra e o mundo. Na minha infância, comecei a ter percepção do “mundo”, das “coisas de adulto” com certa facilidade, pois a vivência diária com minha família me trazia muitos aprendizados, que eram um tipo de letramento vindo da visão “popular” de mundo que tinham.

Os ensinamentos sobre a forma de ver e entender as coisas se davam a partir dos conhecimentos que os mais velhos da comunidade tinham. Era muito comum ver as pessoas cantando, trabalhando e lendo, de forma que elas entendiam as coisas; muitos não liam letras do alfabeto, mas liam as imagens que estavam vendo, e demonstravam interpretações complexas daquilo tudo. No entanto, minha relação com o mundo da leitura e da escrita na minha infância era difícil, uma vez que poucos no meu entorno eram alfabetizados.

No momento desta escrita, estou com 25 anos e sou moradora da comunidade de Capivari, uma comunidade Quilombola localizada no município de Serro, no Vale do Jequitinhonha. Sempre fui uma menina muito estudiosa, apaixonada por leituras, linguagem, literatura e diversas outras formas de conhecimento. Cada uma dessas áreas me proporcionou enxergar diferentes aspectos de mim mesma e do mundo ao meu redor, ampliando minha visão de mundo, meus letramentos, meus significados. Também sou mãe de uma menina chamada Kemylly, que tem 5 anos de idade.

Venho de uma família formada por dez pessoas. Minha mãe, Enilce, tem 50 anos e cursou a escola até o 5º ano. Meu pai, Anirton, com 52 anos, também estudou até o 5º ano. Juntos, eles buscaram me ensinar o que sabiam, da forma que podiam. Somos seis irmãs, sendo que Katia tem vinte e sete anos e atualmente está cursando o ensino superior comigo. Na nossa infância, não tínhamos recursos para a educação e nem acesso à internet. Os poucos livros eram oferecidos pela prefeitura municipal, ou os livros religiosos. Lembro-me da escola pequena de tijolos de barro e telha de amianto, com apenas duas salas onde as aulas eram ministradas de forma multisseriada, com duas professoras de manhã e duas à tarde.

Durante esse tempo, as professoras eram muito atenciosas e nos ajudavam na leitura, na compreensão das imagens e outros elementos. Fiquei nessa escola até o 5º ano, pois a escola não oferecia os anos subsequentes. Assim, tivemos que ir para a comunidade vizinha para continuar nossos estudos até o segundo grau. Minhas irmãs Indiamara, Beatriz, Kassia e Berenice viveram suas experiências de estudo em um período em que a escola passou por reformas, tanto na estrutura física, quanto nos recursos disponíveis, incluindo acesso a mais livros e à internet.

Durante a minha infância, recordo-me com carinho do auxílio que minha irmã mais velha e minhas primas me proporcionavam ao compartilhar conhecimentos adquiridos na escola e em conversas com outras pessoas. Além disso, elas também me incentivavam a ler ao trazerem livros da escola para enriquecer meu aprendizado.

Logo após concluir meus estudos na escola da comunidade vizinha, ingressei na Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM), no curso de Licenciatura em Educação do Campo, com ênfase em Ciências da Natureza. Nesse ambiente acadêmico, tive a oportunidade de conhecer pessoas que desempenharam papel fundamental em minha formação, como professores, técnicos e principalmente os colegas, que me auxiliaram de maneira significativa ao longo desse processo.

Meu letramento no início foi difícil, pois a forma de estudar e como as coisas aconteciam eram novas para mim. Tive muita dificuldade em compreender as aulas e em me concentrar nas leituras e nos livros indicados pelo professor, devido à linguagem ser diferente do que eu estava acostumada. 

Durante meu curso, essa evolução gradual tornou-se evidente, especialmente a partir do quarto período. Com o auxílio dos colegas, pude compreender melhor as exigências do curso e as leituras necessárias. Isso me permitiu concentrar mais os meus esforços. Comecei a realizar não apenas as leituras obrigatórias em sala de aula, mas também as complementares, que foram fundamentais para minha formação. Percebi a existência de visões de mundo distintas, porém, ao mesmo tempo, semelhantes. Inicialmente, trazia o conhecimento popular como minha base principal, mas ao me inserir no ambiente acadêmico, fui integrando-o ao saber científico. Embora essas duas bases fossem diferentes, percebi que compartilhavam semelhanças essenciais. O conhecimento popular, embora não reconhecido pela ciência, mostrou-se igualmente valioso ao lado do conhecimento científico.

Durante minha trajetória formativa, participei de grupos de leitura, projetos de ensino, atividades de extensão como o projeto Vídeo Cartas, entre outros, nos quais a leitura desempenhava um papel central. A partir do quinto período, intensificou-se o contato com novas leituras, livros e autores, especialmente durante meu estágio, momento de significativo aprendizado.

No oitavo período, tive minha filha e concluí minha formação na área das ciências em 2020. Atualmente, estou cursando outra graduação na Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM), na área de Linguagem e Códigos. Nesta nova formação, tive a oportunidade de participar do PIBID, onde pude exercer funções que enriqueceram significativamente meus conhecimentos como futura educadora do campo. Além disso, essa experiência tem me permitido enxergar com maior clareza questões em minha comunidade que antes passavam despercebidas.

Hoje, só tenho a agradecer pelo processo de formação ao qual me inseri. Agradeço imensamente à minha família e a todos os colegas da Licenciatura em Educação do Campo, que me apoiaram e continuam me apoiando em cada etapa dessa jornada.



SOBRE A AUTORA:

Katiane da Cunha Ribeiro é acadêmica da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM), na Licenciatura em Educação do Campo. Produziu este relato na disciplina Gêneros Textuais/Discursivos, ofertada de julho a novembro de 2024.

 

 

 

Este trabalho foi orientado pelo professor Carlos Henrique Silva de Castro e faz parte do livro Memórias de letramentos 5, que pode ser baixado gratuitamente. Clique na capa ao lado.

 

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