Por Solange Santos [1]
Nasci em uma comunidade rural chamada Boa Vista do Choro, localizada na zona rural de Padre Paraíso, no médio Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais. Neste ambiente rural, cresci e tive os primeiros ensinamentos que se tornaram base para minha vida e para minha formação como ser humano: fé, família, amor à minha terra e aos estudos.
Sou a oitava filha de uma família com 11 irmãos. Iniciei os estudos aos sete anos e, até a terceira série do Fundamental I, tive aulas diárias, em turmas multisseriadas. Nesta época, eu tinha a companhia minha prima Vilania, da mesma faixa etária que eu. Fazíamos o trajeto de uma hora até a escola a pé. Enfrentamos vaca brava, poeira, chuva e frio e, na maioria das vezes, sem tomar o café da manhã. Na escola, havia apenas sete alunos. A professora era respeitadíssima por nós, mas era um respeito adquirido de forma mais enérgica: ela possuía uma vara que não saía de sua mesa, usada quando necessário, ou seja, quando um aluno agredia outro, desobedecia às regras ou mesmo para chamar nossa atenção para algo.
O recreio era um momento muito esperado, tínhamos um tempinho para brincar de correr, de pique-salvo, de pedrinhas, dentre outras brincadeiras. Na terceira série, formação máxima ofertada por essa escola, parei de estudar. Em 1998, a escola foi contemplada com uma verba para ampliação do espaço e das atividades. Vi uma oportunidade para dar sequência aos estudos, porém, estudei nesta instituição por apenas mais um ano, até concluir a quarta série do Ensino Fundamental I.
Para continua a estudar, tive que me transferir para outra escola, que ficava em um povoado chamado Encachoeirado, local em que pude concluir meus estudos.
No período em que cursei o Ensino Fundamental II, algo marcante ocorreu em minha vida. Voltando ao meu passado sombrio, faço um esforço, agora, para relatar parte destes acontecimentos. Quando eu tinha 13 e 14 anos, já cursando a 7ª série do Ensino Fundamental II, Vilania, minha única companhia para ir à escola, mudou-se para outra comunidade. Passei a fazer o trajeto para a escola sozinha e, por duas vezes, por volta de cinco horas, sofri duas tentativas de estupro. Por causa disto, quase parei de estudar, pois sempre passaria por aquele local. Nem mesmo o tempo será capaz de apagar estas lembranças dolorosas.
Na juventude, mudei-me para a sede da cidade de Padre Paraíso, onde trabalhei como doméstica, para conseguir terminar meus estudos e, assim, concluir o Ensino Médio, cursado na Escola Estadual. O sonho de continuar os estudos foi novamente adiado, pois me casei e os afazeres de dona de casa, mãe e esposa soterraram, naquele momento, meus sonhos.
A vontade de cursar o ensino superior voltou quando meu amigo, da cidade vizinha, Itinga, percebendo meu desejo de voltar a estudar, apresentou-me a LEC – Licenciatura em Educação do Campo (UFVJM) e me incentivou fazer o vestibular.
Estar em uma Universidade Federal abriu-me um leque de oportunidades, como o acesso à educação de qualidade, à profissão, a convivências individuais e coletivas enriquecedoras. Hoje, vejo o Vale do Jequitinhonha como lugar de riquezas diversas, dentre as quais destaco a cultura local e os eventos, principalmente, os literários.
Atualmente, sou voluntária no telecentro na cidade de Caraí, onde resido há mais de 12 anos. Pretendo dar continuidade aos meus estudos, fazer mestrado ou, no mínimo, uma especialização, tratando de um tema que me é caro: a falta de formação adequada dos professores que atuam em sala de aula. Tentarei compreender como é possível transformar a educação, como é possível propiciar aos professores uma educação contextualizada, porque há falta de espaço físico e de materiais na educação brasileira, ou seja, a ideia é justamente entender por que alguns educadores, principalmente no meio rural, não têm acesso a conceitos relevantes sobre a educação em geral.
[1] Este texto é parte do ebook Memórias de Letramentos II: Outras Vozes do Campo, disponível para download gratuito aqui: auladigital.net.br/ebooks.