Meu Caderno do Menino Maluquinho

Kênia Lopes Almeida, Turmalina/MG

Vivemos em um mundo onde a correria do dia a dia nos leva a terceirizar algumas atividades rotineiras, e isso também se aplica ao acompanhamento de nossas crianças em tarefas simples. Na minha família não foi, e não é, diferente. Tenho 36 anos e venho de uma família humilde, com pouco conhecimento escolar. Sou filha de um pintor e de uma copeira, ambos com o ensino fundamental. Em casa, não havia muita didática de leitura; o máximo que eu tinha à disposição era um caderno e um lápis para rabiscar, o que, por sinal, era muito divertido.

Minha vivência na creche começou aos 6 meses de idade, no ano de 1988, em Belo Horizonte – MG, na Creche Comunitária Vila Piratininga, que foi o braço direito dos meus pais na minha educação e alfabetização. Lá, eu passava a maior parte do meu dia, na verdade, o dia todo. A creche me proporcionou meu primeiro contato com livros de historinhas infantis, cantigas de roda e brincadeiras. Sempre havia releituras de histórias, de várias formas, até mesmo com fantoches e teatros. A brinquedoteca era o melhor momento; lá, havia brinquedos educativos e livros, onde podíamos ser “livres” para escolher e expressar o que desejássemos.

As atividades em sala de aula envolviam trabalhinhos feitos com tintas, feijões, retalhos e bolinhas de papel crepom. Usávamos muita criatividade, papel e cola, mas o tão sonhado caderno ainda não fazia parte da rotina. As cuidadoras da creche eram muito carinhosas, e foi nesse ambiente de cuidado que eu cresci, criando vínculos, memórias afetivas e momentos importantes para a minha vida pessoal, educacional e profissional. Foi nesse ambiente que iniciei minha escrita.  Na creche, antes mesmo do “prezinho” (pré-escolar), fui apresentada às primeiras letras, especialmente o “K”, com o qual se inicia meu nome, que foi, inclusive, bem difícil de aprender.

Em 1993, na mesma creche, iniciei o prezinho e chegou o grande momento de receber meu primeiro caderno, doado pela instituição. Era um caderno brochura com a capa do Menino Maluquinho. Eu não o levava para casa, mas agora as atividades não eram mais feitas em folhas avulsas, e sim no meu caderno, que meu pai fez questão de guardar e que tenho até hoje.

Os desafios agora eram novos. Eu precisava aprender a escrever meu nome completo até o final do ano para assinar meu primeiro diploma. Comecei a aprender o alfabeto completo e os números. Ah, os números! Eles conquistaram meu coração desde o início, com as continhas básicas. O prezinho foi um período muito marcante para mim. A professora Elaine era muito paciente, e pude aprender bastante com ela durante todo o ano. Considero que tive um bom preparo para ingressar no Ensino Fundamental. Fiz amizades que perduram até hoje.

No final do ano do prezinho, recebi o tão sonhado diploma da Branca de Neve, que também tenho até hoje. No entanto, guardo certo ressentimento porque a secretaria insistiu para que eu acrescentasse o “de” ao meu sobrenome, e assim assinei o diploma de forma errada. Por outro lado, tenho uma linda lembrança da minha formatura e do desejo de frequentar a escola.

O ano era 1994: uniforme novo, escola nova. Agora, além de um caderno, eu tinha uma mochila, uma bolsinha e até uma lancheira. Quanta novidade! Ingressei na Escola Estadual Carmo Giffonni e fui acolhida pela professora Bernadete, uma mulher evangélica, muito carismática, mas rígida em suas cobranças.

Nesse período, comecei a gostar mais de matemática; o português nunca foi meu forte. Eu chegava em casa e, por diversão, escrevia os números até onde conseguia. Fazia competições com minhas primas, enchendo folhas e folhas com números. Quando o assunto era a escrita, eu precisava melhorar minha letra. Na tentativa de ajudar, meus pais compraram um caderno de caligrafia, mas foi em vão, pois minha letra continua um desastre.

A primeira série me trouxe experiências que, até hoje, ao lembrar, me remetem às emoções daquela época. Posso citar o tão temido “ditado”, que, quando anunciado pela professora, me fazia tremer e quase chorar, pois eu sabia que a escrita era meu ponto fraco. Porém, eu sentia uma alegria imensa quando a professora nos pedia para estudar a tabuada.

Na escola em que estudava, só passava de ano quem fizesse uma boa leitura na secretaria. Apesar de minha escrita não ser das melhores, minha leitura sempre foi considerada boa, e minhas notas também eram boas. Assim, passar de ano nunca foi difícil para mim. Durante quatro anos, estive na mesma escola, estudando de manhã e frequentando a creche à tarde, onde havia apoio para as tarefas de casa e outras atividades para reforçar o aprendizado.

As séries iniciais me proporcionaram uma base escolar muito rica. Lembro-me das pesquisas feitas em bibliotecas, das reuniões com colegas para montar cartazes que seriam apresentados em sala de aula e dos trabalhos escritos, que geralmente eram feitos com a enciclopédia da Barsa.

Com o fim da quarta série (atual quinto ano), uma nova mudança se aproximava: o ingresso na quinta série, em outra escola, com mais disciplinas e mais professores. Nesse período, também fui informada de que teria que deixar a creche, pois não havia mais verba para manter os alunos até os 18 anos, como antes. Isso me abalou bastante, pois a creche havia sido meu apoio durante toda a minha vida escolar.

A escola em que comecei a quinta série não era a melhor da região, e não tenho muitas lembranças desse período, pois minha família se mudou para Montes Claros – MG, onde concluí a quinta série. Devido à mudança, foi um ano em que, apesar de tirar boas notas e ser aprovada para a sexta série, não adquiri muito conhecimento.

Ao retornar para Belo Horizonte – MG, fui matriculada em outra escola, onde cursei a sexta e a sétima séries. Reencontrei colegas da creche e conheci o professor de matemática, Ercílio, que foi mais um dos responsáveis por me apaixonar pela matéria. Era encantador como ele apresentava os conteúdos e fazia com que toda a turma os absorvesse.

Com o Ensino Fundamental concluído, ingressei no Ensino Médio. A imaturidade da adolescência fez com que eu não me preocupasse tanto em aprender, e sim em apenas passar de ano. Embora eu tenha tido boas notas e um bom desempenho, não considero que tenha absorvido muito conteúdo, especialmente em matérias como química, biologia e física.

O último ano do Ensino Médio foi um período muito difícil, em que tive que lidar com a depressão. Cheguei a um ponto crítico, ficando de cama, sem conseguir tomar banho e até tentando contra minha própria vida. Em meio a esse caos da depressão, consegui concluir os estudos, mas me vi sem rumo e sem expectativas. Diante da situação, meus pais sugeriram que eu fosse morar em Montes Claros – MG para tentar o vestibular.

Ao me mudar, comecei a fazer cursinho e me deparei com a decisão mais difícil: qual curso escolher? Após muitas pesquisas, decidi tentar o vestibular para Economia e Administração na Universidade Estadual de Montes Claros (UNIMONTES), mas não passei.

Isso me desmotivou, mas resolvi tentar novamente, e a vitória veio; fui aprovada em Economia, com 17 anos, para ingressar no início de 2007. A aprovação significava muito para mim e para minha família, pois eu seria a primeira da família da minha mãe a entrar em uma faculdade, o que era um peso imensurável.

O ingresso na faculdade, além de me tirar da depressão, ampliou meus horizontes de conhecimento. Aprendi a estudar com seriedade e a desenvolver leituras críticas. Tive a oportunidade de participar da iniciação científica, o que ampliou ainda mais minha compreensão de textos acadêmicos e me permitiu publicar artigos.

Formei-me em Economia em 2010, aos 21 anos, e entrei no mercado de trabalho, embora não diretamente na minha área. Há dois anos, aos 34 anos, tornei-me mãe de gêmeos e tenho um enteado de 9 anos, o que me demanda muito tempo.

Afastei-me do mercado de trabalho e atualmente estou cursando Matemática pela Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM), buscando me reencontrar, pois estudar é algo que me satisfaz e me faz sentir viva.

Hoje, ao olhar para o meu caderno do Menino Maluquinho, vejo que ali foi apenas o começo, um começo que não precisa ter fim enquanto eu existir.



SOBRE A AUTORA:

Kênia Lopes Almeida, de Turmalina/MG, é acadêmica da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM) e produziu este relato na disciplina Práticas de Leitura e Produção de Textos, ofertada de julho a novembro de 2024.


A orientação deste trabalho e a organização do e-book foram realizadas pelo Professor  Carlos Henrique Silva de Castro e pelos Tutores Daniela da Conceição Andrade e Silva, Luís Felipe Pacheco e Patrícia Monteiro Costa.

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