Aprender a ler e escrever sem ter o que comer

Abelino

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Abelino Reis Sales, Fronteira dos Vales/MG

Na minha vida, tudo começou de forma difícil. Nasci em uma pequena cidade do interior da Bahia chamada Itanhém. Aos 4 meses de idade, fui abandonado pelo meu pai, que nem sequer quis colocar o nome na minha certidão de nascimento.

Minha mãe e minha avó foram as minhas bases familiares. Mulheres analfabetas, lavradoras do campo, plantavam e colhiam frutas da roça para levar até o mercado municipal da cidade de Itanhém/BA e vendê-las. Com os lucros, podiam trazer o sagrado alimento para o humilde lar.

No deslocamento entre a roça e a cidade Itanhém/BA, por vezes, minha mãe contava histórias sobre mitos folclóricos. Eram quilômetros de caminhada a pé para chegar até a cidade, mas, fizesse sol ou chuva, as duas mulheres guerreiras ainda assim levavam no lombo do seu jegue uma criança e balaios com farinha de mandioca, entre outros itens, para vender.

Fui crescendo e observando o modo de vida sofrido que essas pessoas levavam; contudo, não tenho recordações do que ocorreu na roça, lembrando apenas da vida na cidade. Lembro-me de que, aos 6 anos, surgiram as lembranças da escola, dos amigos de infância e do trabalho árduo de minha mãe para que seu filho pudesse estudar. Por vezes, ela trabalhava em casas de família para trazer apenas um pouco de alimento para que eu pudesse ir à escola.

Lembro-me de que, naquela época, só poderia ir para a escola com uniforme, porém minha família não podia arcar com os custos. A solução eram as doações de uniformes de estudantes do ano anterior, que não lhes serviam mais. Com eles, eu me vestia e ia para o colégio. Outra motivação era a merenda, alimento que não tinha em minha casa.

Não gostava de faltar às aulas por nenhum motivo, pois ali encontrava colegas, brincadeiras e voltava para casa de barriga cheia. Na minha sala de aula, havia muitas pessoas com mochilas, estojos, cadernos de capa dura, canetas de colorir, tênis, entre outros objetos que eu não possuía. Meu material escolar era uma sacola de pano onde levava um caderno brochurão, lápis, borracha e apontador, que era um pedaço de ponta de faca.

Na época da minha escola, nos anos iniciais, não sofri bullying e, mesmo sendo negro, nunca me senti discriminado. Contudo, a única separação que existia era que a turma A era dos filhos de professores e a turma B, do restante dos alunos.

Certa vez, aos 10 anos, escrevi minha primeira carta para minha querida madrinha, que havia me pedido que escrevesse contando o que eu queria de presente no meu aniversário. Eu escrevi que queria um carrinho de mão para poder trabalhar e ajudar minha mãe. Ganhei o carrinho de mão e comecei a pegar feira para as pessoas idosas, ganhando minhas primeiras moedas. Com elas, podia comprar um pastel ou alguma guloseima no intervalo da escola.

Na quarta série, percebi que tinha facilidade em matemática, pois comecei a aprender a decorar a tabuada e a tirar as melhores notas da sala e do colégio. Com isso, comecei a ser mais bem visto pelos colegas, a ser admirado pelas meninas e a ganhar notoriedade.

Minha forma de aprender era prestando atenção e memorizando o que o professor falava em sala de aula, pois os livros naquela época eram comprados. Como eu não tinha condições financeiras, escrevia tudo no caderno para fazer uma boa prova. No ensino fundamental, começou uma revolução, pois no colégio começamos a ter aulas de inglês e informática, uma situação nova para mim. Alguns colegas tinham computador em casa, e eu, como sempre, não tinha nem televisão nem geladeira. Para aprender inglês, alguns colegas diziam que assistiam a filmes e ouviam músicas estrangeiras. Com certa razão, inglês não é o meu forte.

Era preciso vencer todos esses obstáculos que a vida colocava na minha frente; e eu, como sempre, uma pessoa destemida, encarava tudo isso sem medo e sem vergonha, mantendo o foco. Ano após ano, eu fazia mais amigos na escola e era convidado para ir à casa dos colegas fazer trabalhos escolares. Muitos queriam ficar perto de mim para receber “cola” nas provas de matemática. Certa vez, no ensino médio, já nas provas finais, quando eu, claro, já havia alcançado as notas para aprovação no terceiro bimestre, fiz a prova de duas colegas para que não ficassem de recuperação.

Uma vez, peguei recuperação em história, e foi aquele chororô, pois jamais tinha acontecido. Mostrei novamente a minha capacidade intelectual. Peguei um livro na biblioteca, estudei durante duas semanas e, no dia da prova, fiz 95 pontos; ou seja, minha dedicação foi determinante.

Estudar é prazeroso, e na época da minha escola não havia recursos tecnológicos para imprimir provas. Lembro-me de que precisávamos levar papel “chamequinho” para as professoras usarem em nossas atividades. As atividades eram primeiro datilografadas e, depois, passavam por uma máquina manual chamada mimeógrafo, que magicamente transferia a tinta de um papel para o outro. Às vezes, até os alunos ajudavam.

Na minha rua moravam duas professoras. Uma delas sempre me dava revistas velhas para eu ler e recortar para fazer alguns trabalhos escolares. A gente percebia o quanto era corrida a vida delas, pois chegavam em casa com aquele monte de provas para corrigir, além de fazer plano de aula para o dia seguinte; era um amontoado de material. Eu, certa vez, ajudei-as a corrigir provas.

Hoje, entendo por que nossos pais, parentes e professores sempre diziam que, para ter um futuro melhor, “tem que estudar”. Assim, fui estudando e cheguei à graduação. No ensino médio, quando saí do interior para procurar uma vida melhor em Belo Horizonte/MG, tive dificuldade em concluir o terceiro ano.

A escola ficava cerca de 4 quilômetros da minha residência e, como não tinha dinheiro para pagar o ônibus, era uma hora de caminhada entre carros, motos e caminhões, o que atrasou minha formação. Na cidade grande, há inúmeros desafios, e os professores já não eram tão acolhedores como no interior. Além disso, as pessoas eram desconhecidas, com relações mais complexas do que aquelas que a gente conhece desde a infância.

Foi com muita luta, determinação, coragem e sabedoria que a minha história de vida mudou para melhor. Foi através da educação que conheci uma amiga e colega de classe chamada Enedineia, que me apoiou quando morei em Belo Horizonte/MG. Após o ensino médio, comecei a estudar matemática com ela.

Ela desejava fazer o concurso da PMMG (Polícia Militar de Minas Gerais). Eu, como sempre, não tinha dinheiro para comprar a apostila. Aos sábados, após o meu trabalho, deslocava-me a pé para o bairro onde ela morava, a uns 5 quilômetros do meu, e ensinava matemática para ela, além de aprender mais com as apostilas.

Comecei a ver que as matérias exigidas não eram muito difíceis, e foi ali, todos os fins de semana, ensinando e aprendendo, que ela falou: “Você tem capacidade de fazer essa prova.” Fiquei pensando, mas não tinha dinheiro para pagar a inscrição nem computador para fazê-la. Criei coragem e pedi um adiantamento ao meu patrão. Com o dinheiro, fui a uma lan house e fiz a inscrição.

Novamente, com esforço e dedicação, e com os conhecimentos adquiridos no ano de 2006, em meu primeiro grande concurso, com mais de 50 mil candidatos inscritos, fiquei entre os 2 mil classificados e ingressei como soldado na PMMG. Estou na instituição há 18 anos, na atual função de sargento.

E aquelas palavras de minha mãe e dos professores sempre serão levadas enquanto eu viver: “Estude, estude!” Acredito que a mudança em cada um de nós depende de sacrifício, dedicação e força de vontade.



SOBRE O AUTOR:

Abelino Reis Sales, de Fronteira dos Vales/MG, é acadêmico da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM), onde cursa Pedagogia. Produziu este relato na disciplina Práticas de Leitura e Produção de Textos, ofertada de julho a novembro de 2024.


A orientação deste trabalho e a organização do e-book foram realizadas por Carlos Henrique Silva de Castro, Kátia Lepesqueur e Virgínia Batista.

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