Recomeços

Geisiele

Os textos publicados individualmente nesta página podem ser lidos reunidos nos volumes da coleção Memórias de Letramentos. Para adquirir seu e-book gratuito ou impresso  pelo preço apenas do serviço de gráfica, clique no banner ao lado ou no fim da página.


Geisiele Vieira Fernandes, Itamarandiba/MG

Minha história começa em um ambiente onde a educação formal era um privilégio inalcançável. Meus pais, que cresceram na roça, eram analfabetos e nunca tiveram contato com livros ou qualquer tipo de ensino escolar. A vida deles foi marcada por uma rotina de trabalho intenso e contínuo, com poucas oportunidades além da luta diária pela sobrevivência. Na roça, a realidade era dura: as dificuldades financeiras e as questões sociais se entrelaçavam, tornando cada dia uma batalha.
A ausência de educação formal na minha família não foi por falta de desejo, mas por falta de acesso e recursos. Essa ausência de oportunidades educacionais significava que a vida de meus pais era repleta de desafios, e o foco era simplesmente garantir o sustento, que muitas vezes vinha de trabalho em troca de farinha e fubá para termos o que comer à noite.
Apesar das limitações, o exemplo de força e perseverança que meus pais me proporcionaram foi uma lição valiosa. Eles enfrentaram as adversidades com dignidade e coragem, e esses valores foram passados para todos nós, filhos. A determinação deles, principalmente da minha mãe, para criar um futuro melhor, mesmo sem as ferramentas da educação formal, foi uma fonte constante de inspiração.
Hoje, ao refletir sobre minha trajetória, reconheço a importância das lições que aprendi com meus pais e a força que encontrei para superar os obstáculos. A história da minha família é uma prova de resiliência e de como a força interior pode transformar desafios em oportunidades para crescer e aprender.
Minha experiência com o ensino básico foi marcada por desafios significativos que refletiam a realidade difícil da vida na roça. A escola mais próxima ficava a cerca de duas horas de caminhada de nossa casa, o que tornava a ida e a volta muito cansativas. Sem acesso a mochilas, improvisávamos com sacolas de arroz para carregar nossos livros e cadernos. Cada ida à escola era uma jornada que exigia muito mais do que apenas tempo; era um teste constante de perseverança e resiliência.
Em casa, a falta de eletricidade nos obrigava a usar lamparinas para realizar as tarefas escolares à noite. O óleo diesel utilizado nas lamparinas frequentemente acabava sujando nossos cadernos e livros, tornando a tarefa de estudar ainda mais desafiadora. As condições precárias de iluminação e o desgaste constante dos materiais eram apenas alguns dos obstáculos que enfrentávamos.
As provas na escola eram realizadas em mimeógrafo, uma tecnologia simples que, embora útil, também refletia as limitações dos recursos disponíveis. A professora Elizabete Gonçalves fazia o possível para enriquecer nosso aprendizado. Ela distribuía as provas mimeografadas e fornecia revistas para que recortássemos e colássemos em nossos exercícios, tentando tornar o aprendizado mais dinâmico e envolvente.
Durante o período do ensino fundamental, minha jornada escolar foi marcada por dificuldades intensas e muitos desafios. A escola que frequentava estava localizada a cerca de 40 km de distância, no município de Itamarandiba/MG. Para chegar até lá, meu dia começava muito antes do amanhecer. Em dias secos, eu acordava às 3h30 da manhã; nos dias chuvosos, o despertador tocava ainda mais cedo, às 2h30. A caminhada até o ponto de ônibus escolar, que fazia o trajeto da roça até a cidade, levava aproximadamente 1h30. O retorno para casa era super desgastante, ocorrendo por volta das 14h30. Esse longo percurso não apenas demandava uma enorme dedicação e resistência física, mas também era um verdadeiro teste de perseverança diante das adversidades diárias.
Além das dificuldades no transporte, a fome era uma preocupação constante. Muitas vezes, a merenda oferecida pela escola não era suficiente para todos os alunos, e nossa família não tinha condições financeiras para suplementar nossa alimentação com comida comprada. Esse problema era agravado pela longa jornada, que fazia com que a fome se tornasse um desafio constante e uma fonte de desconforto.
A situação no ônibus escolar também era complicada. A estrada em péssimas condições causava grande desconforto devido à poeira e ao balanço do ônibus. Esses fatores, combinados com a fome, frequentemente resultavam em dores de cabeça intensas e episódios de náusea. Era um esforço constante para manter a concentração e a disposição durante todo o trajeto.
A situação tornou-se ainda mais difícil com a perda da nossa mãe. Sua ausência significava que não tínhamos ninguém para preparar a comida que precisávamos após a escola. Essa falta de apoio afetou profundamente nossa vida escolar e pessoal, tornando ainda mais difícil manter o foco nos estudos e lidar com as exigências diárias.
Após enfrentar inúmeras dificuldades durante o ensino básico e fundamental, consegui chegar ao ensino médio, um período que, embora ainda desafiador, trouxe algumas melhorias na minha trajetória educacional e pessoal. Durante o ensino médio, minha vida passou por algumas mudanças. Eu e duas irmãs, junto com meu pai, nos mudamos para o distrito de Itamarandiba/MG, conhecido como Contrato.
Essa mudança foi um ponto de virada, pois a escola onde passei a estudar, a Escola Estadual Betina Gomes, ficava a apenas 10 minutos de nossa nova residência. A proximidade da escola facilitou muito o acesso e aliviou algumas das dificuldades logísticas que enfrentávamos anteriormente. Com essa mudança, nossa rotina também começou a se transformar.
Na Escola Estadual Betina Gomes, minha experiência escolar teve momentos marcantes. Lembro-me com carinho da professora de Português, Carla, que nos desafiava a fazer encenações relacionadas a livros clássicos como “O Guarani” e “Iracema”. Mas eu tinha uma enorme dificuldade em participar; sempre fui muito tímida e calada, no meu canto. Além disso, no campo da matemática, tive a sorte de ser aluna do professor Marcos, que reconheceu meu empenho e dedicação. Ser considerada uma das melhores alunas da sala, apesar dos desafios que ainda surgiam, foi um grande reconhecimento.
O ensino médio, portanto, trouxe uma combinação de desafios e conquistas que foram fundamentais para meu desenvolvimento acadêmico e pessoal. Essa experiência mais estável e o esforço definiram minha trajetória educacional até então.
Após concluir o ensino médio, tive a oportunidade de iniciar meus estudos em Geografia na universidade. Esse foi um momento de grande esperança e entusiasmo, pois representava a continuidade da minha jornada educacional e o início de uma nova fase na minha vida acadêmica. No entanto, logo enfrentei desafios significativos que se mostraram difíceis de superar. Apesar do esforço e da dedicação que coloquei em meus estudos, questões financeiras acabaram se tornando um obstáculo intransponível. Infelizmente, fui forçada a interromper minha faculdade no segundo semestre.
A interrupção dos estudos superiores foi um período de adaptação e reflexão, pois precisei lidar com a realidade de que, por enquanto, a continuidade acadêmica não seria possível. Após essa experiência, um pouco mais tarde, iniciei a faculdade de Pedagogia em um processo seletivo pela UFVJM. Esse episódio, embora desafiador, faz parte da minha jornada e reflete a resiliência necessária para enfrentar as adversidades.



SOBRE A AUTORA:

Geisiele Vieira Fernandes, de Itamarandiba/MG, é acadêmica da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM), onde cursa Pedagogia. Produziu este relato na disciplina Práticas de Leitura e Produção de Textos, ofertada de julho a novembro de 2024.


A orientação deste trabalho e a organização do e-book foram realizadas por Carlos Henrique Silva de Castro, Kátia Lepesqueur e Virgínia Batista.

%d blogueiros gostam disto: