Minhas vivências aprendendo

 

 

Tenho 25 anos e sou natural da comunidade Quilombola do Peixe Bravo, localizada em Riacho dos Machados, Minas Gerais. Desde a infância, sempre fui uma pessoa curiosa, interessada em compreender o motivo das coisas, mesmo sem saber ler ou escrever. Desde cedo, já estava em contato com o significado das palavras, dos objetos e dos sentimentos ao meu redor.

Aos 4 anos, comecei a questionar a origem das palavras, observando minhas primas mais velhas indo à escola, fazendo tarefas de casa e utilizando materiais de papelaria. Eu tinha um grande desejo de acompanhá-las, mas naquela época era pequena demais para frequentar a escola. Como não podia frequentar a escola, uma das minhas primas me presenteou com um livro antigo para que eu pudesse rabiscar e estudar. Assim, mesmo sem ter aulas formais, eu aproveitava cada momento para explorar aquele livro: rabiscava, desenhava e tentava decifrar as letras e palavras ali escritas. Foi com ele que aprendi a contar os números. 

A sensação que tenho é que tudo isso aconteceu “ontem”. Quem poderia imaginar que um simples livro velho despertaria em mim tantos sentimentos e me motivaria a gostar do aprendizado. Um dos motivos pelos quais minha mãe relutava em me matricular na escola das minhas primas era a distância considerável que eu teria que percorrer. Eram vários quilômetros a pé até chegar ao ponto de ônibus, seguidos por mais horas de viagem até chegar à escola.

Quando completei cinco anos, minha mãe decidiu me matricular na escola, apesar de suas preocupações. Ela conversou com uma professora da escola e explicou que, apesar de minha vontade de estudar ser forte, ela tinha receios devido à longa caminhada até o ponto de ônibus.

Foi nesse momento que a querida professora Selma sugeriu à minha mãe que, se eu realmente queria estudar e já estava matriculada, ela poderia me levar até o ponto de ônibus e pedir a alguém que me acompanhasse dentro do ônibus. Assim, minha mãe fez. Quando ela voltou para casa, trouxe a notícia de que eu poderia ir para a escola todos os dias, na companhia das minhas primas.

Chegou o grande momento do primeiro dia de aula. Acordei cedo, cheia de empolgação, pedindo à minha mãe para me arrumar logo, pois estava prestes a realizar um sonho. Ao entrar na sala cheia de crianças, experimentei uma mistura de ansiedade, nervosismo e empolgação. A professora Selma, com seu sorriso acolhedor, ajudou-me a encontrar minha carteira e logo percebi que ali, naquele ambiente repleto de livros, quadros e lápis coloridos, eu estava exatamente onde sempre quis estar.

Lembro-me de ser a única na turma que sabia escrever meu nome corretamente, embora ainda não soubesse ler completamente. Foi minha mãe quem me ensinou a escrevê-lo em casa, o que me fez sentir inteligente desde cedo. Além disso, meus pais sempre me contavam histórias, discutiam passagens da Bíblia e tocavam músicas em CDs no rádio. Assim, quando entrei no “pré”, já conhecia algumas letras do alfabeto e alguns números. Na escola, me dediquei bastante e aprendi a ler minhas primeiras palavras com muito entusiasmo.

Quando entrei para o primeiro ano, meu desejo era continuar na mesma classe dos meus colegas, pois adorava aprender junto com eles. Já dominávamos melhor o alfabeto e conseguia facilmente formar palavras. Pouco tempo depois, já era capaz de escrever pequenos textos inspirados nas histórias que a professora contava em sala de aula. 

Foi nesse momento que descobri a biblioteca. Ela era pequena e ficava ao lado da sala, onde a professora nos levava para estimular nossos letramentos e também a nossa imaginação. Lá, tínhamos a oportunidade de escolher um livro por mês para levar para casa, cujas histórias compartilhávamos com a classe. Essa descoberta foi marcante para mim, pois sentia que podia viajar sem sair de casa. O universo dos livros se abriu diante de mim. 

No Ensino Fundamental II, vivi um período de transição marcado por uma mistura de sentimentos: não era mais tão criança, mas ainda estava longe de ser adulta. A pressão na escola aumentou significativamente, com mais atividades e provas mais exigentes, mas mantive minha determinação porque realmente gostava de aprender. Nessa nova fase, comecei a identificar as matérias que mais me interessavam, como português e história, enquanto outras, como Matemática, não despertavam tanto meu entusiasmo. No entanto, o apoio da minha turma de amigos foi fundamental. Lembro-me vividamente de escrever uma carta pela primeira vez, seguindo um modelo, o que foi bastante divertido e educativo.

Sempre tive o desejo de cursar uma faculdade. Esse sonho começou a se aproximar durante o ensino médio, quando as matérias se tornaram mais desafiadoras e a ansiedade tornou-se parte da minha rotina diária. Nesse momento, precisei aprender a lidar com essa ansiedade, então estabeleci um cronograma de estudos mais definido e reservei tempo de qualidade para passar com minha família e amigos, que me ajudavam a manter a calma.

No segundo ano do ensino médio, enfrentei uma mudança significativa ao me mudar para a cidade de Fruta de Leite – MG e passar a viver com minha avó para estudar na Escola Estadual Aníbal Gonçalves das Neves. Foi um período um tanto tenso devido ao recente falecimento do meu avô, além de estar longe dos meus amigos me deixou apreensiva.

Tudo se resolveu quando fiz novas amizades e com a companhia da minha avó, com quem passei momentos significativos, além de começar a me dedicar melhor aos estudos. Lembro-me vividamente de como a leitura foi fundamental nesse período. Era um momento reservado para mim e meus pensamentos. Uma professora, muito especial, sempre me indicava livros e filmes que ampliaram meu horizonte.

Me formar no ensino médio foi um momento muito gratificante, quando pude ver minha família orgulhosa e me sentir preparada para a próxima etapa. A nostalgia daquele tempo ainda persiste: a sala colorida, meus amigos e o apoio constante da minha família com as tarefas iam além das simples aulas.

Após a formatura, sabia que o próximo passo seria a faculdade. Embora inicialmente assustador, em 2021, decidi ingressar na Licenciatura em Educação do Campo na UFVJM, decisão que hoje me preenche de satisfação. A cada dia, me encanto mais com a complexidade dos estudos, explorando de maneira ampla e específica temas que sempre me fascinaram. Descobrir que há tanto a aprofundar nesses assuntos e ter a perspectiva de ensiná-los futuramente me inspira profundamente.

 

 

 



SOBRE A AUTORA:

Márcia Vicente de Sales é acadêmica da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM), na Licenciatura em Educação do Campo. Produziu este relato na disciplina Gêneros Textuais/Discursivos, ofertada de julho a novembro de 2024.

 

 

 

Este trabalho foi orientado pelo professor Carlos Henrique Silva de Castro e faz parte do livro Memórias de letramentos 5, que pode ser baixado gratuitamente. Clique na capa ao lado.

 

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