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Ilvona Mendes Pereira, Cristália/MG
Meu interesse pelas letras começou antes mesmo de eu ingressar na escola. Na minha infância, vivendo na zona rural, não havia creche ou pré-escola. No entanto, eu tinha a sorte de ter uma irmã e uma prima que frequentavam a escola. Elas chegavam em casa e me mostravam o que haviam aprendido, e eu ficava fascinada com as letras e palavras que começava a descobrir. Esse contato precoce com a leitura, mesmo sem a presença de livros em casa — já que meus pais não tinham frequentado a escola — foi um impulso significativo para o meu amor pela educação.
Aos 7 anos, ingressei na Escola Municipal Clarindo Barbosa. Minha primeira professora, Eriene, carinhosamente chamada de tia Erinha, era extremamente carinhosa e receptiva. A sala de aula era multisseriada, com conteúdos para três etapas diferentes. Apesar de eu ter começado no primeiro ano, a professora percebeu meu avanço e me promoveu para o segundo ano. Eu adorava as histórias dos livros, que me transportavam para mundos de fantasia.
O trajeto até a escola era longo e cheio de aventuras. Junto com minha irmã e minhas primas, percorríamos 60 minutos, atravessávamos dois rios e uma floresta. A caminhada não era cansativa, pois aproveitávamos para brincar e sempre voltava para casa com novas histórias para relatar aos irmãos mais novos.
Na minha casa, não havia energia elétrica. As tarefas que a professora passava eram feitas à luz de lamparina, abastecida por querosene. Nessa mesma época, minha mãe começou a frequentar a Igreja Cristã no Brasil e trouxe para casa uma Bíblia ilustrada. Todas as noites, passamos a ler a Bíblia e a cantar hinos do Cantor Cristão.
As visitas dos irmãos da igreja ocorriam com frequência e, sempre que isso acontecia, eu era chamada para ler a Bíblia. Esses momentos eram muito agradáveis e meu coração transbordava de felicidade ao ver o orgulho nos olhos dos meus pais por eu saber ler e entender o que estava lendo. Eu amava ler, e esses momentos em que todos se reuniam para ouvir a leitura da Bíblia eram especiais.
Meu pai tinha o hábito de contar histórias fascinantes todas as noites, antes de dormir. Todos se reuniam ao seu redor, e ele contava histórias que havia aprendido com sua mãe. Ao final de cada história, ele pegava uma espiga de milho, e cada um de nós contava quantas carreiras tinha. Quem tivesse mais carreiras era o vencedor e ficava isento da tarefa do dia seguinte. Foi assim que aprendi a contar. O próximo passo era contar os grãos, e meu pai usava esse método com sabedoria. Assim, ao mesmo tempo em que nos ensinava a contar, também debulhávamos o milho para alimentar as galinhas no dia seguinte.
Meus primeiros três anos na escola foram marcantes. Eu estudava na mesma comunidade em que morava; a escola não tinha biblioteca, apenas os livros didáticos que a professora usava. Ela tinha métodos para chamar a atenção dos alunos, mas não havia folhas impressas; todo o material era escrito no quadro com giz. A professora era responsável por tudo sozinha na escola: ela limpava a sala, fazia a merenda e ensinava três séries diferentes.
Quando a professora precisava sair para cozinhar, ela sempre deixava um aluno responsável por escrever no quadro. Todos queriam ser escolhidos, mas apenas os que cumpriam as normas da sala eram selecionados. Havia um rodízio, e cada dia a professora tinha um ajudante. Eu era muito tímida, mas amava ser escolhida e aguardava ansiosa pela minha vez. Escrever no quadro para todos era muito satisfatório.
Ao passar para a quarta série, não havia como continuar na comunidade, pois lá eram aulas apenas para os três primeiros anos do ensino fundamental. Então, enfrentei um novo trajeto, uma longa caminhada e novos desafios. Todos os dias, era necessário sair da minha casa às 14h30, fazer um trajeto a pé e pegar o ônibus escolar às 15h40. Dentro do ônibus, circulávamos por estradas de terra por mais seis comunidades até chegar à cidade onde estudávamos. Muitas vezes chovia, e as estradas ficavam escorregadias e barrentas, sendo necessário finalizar o trajeto a pé.
Minha professora do quarto ano se chamava Elizete; ela era muito carinhosa comigo e me apelidou de “minha baixinha”, pois era a aluna mais nova na sala, estudando com 11 anos à noite. Ao final de cada aula, havia uma casa do estudante onde uma senhora servia pão com leite, que era nossa janta, e ela ficava à noite para cuidar das meninas, onde eu dormia. Às 5 da manhã, tinha que estar de pé para voltar pra casa.
Mesmo nessa trajetória cansativa, eu nunca pensei em desistir; aproveitava o tempo no ônibus para dormir. Amanhecia o dia dentro do ônibus; para mim, era sempre uma aventura. Aproveitava o trajeto para ler o que tinha estudado em sala de aula. Com o passar dos anos, surgiu o interesse em ler romances. Conseguia pegar os livros emprestados com as colegas, e na nova escola havia biblioteca, tornando o acesso aos livros bem mais fácil.
Durante meu período de estudos, a comunidade onde eu residia passou a receber visitas frequentes dos responsáveis pela barragem de Irapé. Eles frequentemente traziam cartilhas informativas sobre o processo de reassentamento. Devido à construção da barragem, a área onde minha família vivia seria inundada, obrigando-nos a mudar para outro local. Meu pai assumiu o cargo de presidente da associação de moradores, e eu me tornei membro da diretoria, onde era responsável pela elaboração das atas e pela tesouraria.
Ainda na adolescência, fiz parte de um projeto, o “Pró Jovem”, do qual recebíamos uma bolsa do governo para estudar. Para isso, era necessário prestar serviço em alguma repartição pública como um estágio, uma preparação para a vida adulta.
Cada vez mais, sentia interesse pela educação, e nessa nova fase de reassentamento, a comunidade recebeu a doação de uma biblioteca. Minha família disponibilizou um espaço para receber a biblioteca chamada de Arca das Letras. Cada pessoa pegava um livro, lia e devolvia para que outras tivessem acesso. Tive acesso a vários livros, tanto didáticos quanto de famosos escritores.
No final do ensino fundamental I, aprendi a fazer redação a partir de um projeto em que o melhor texto de cada sala ganharia uma medalha. Fui homenageada e recebi a medalha de melhor redação da turma. Fiquei imensamente feliz e mais motivada a ler e buscar mais conhecimento.
Quando completei 18 anos, meu primeiro emprego foi em um projeto de alfabetização de Jovens e Adultos, o “Cidadão Nota 10”. O governo elaborava material voltado para a formação de adultos que não tiveram acesso à escola; com esse material em mãos, eu tinha a missão de transmitir um pouco do meu conhecimento. Foi um tempo de desafios, ensinamentos e muito aprendizado.
Em 2022, concluí o ensino médio e recebi meu primeiro livro com dedicatória da diretora, “Romeu e Julieta”, que guardo com carinho. Depois disso, cursei Técnico em Informática e Técnico em Alimentação Escolar, e finalmente obtive o Bacharelado em Administração Pública em 2022.
Atualmente, continuo buscando novos conhecimentos e mantendo o hábito da leitura, agora com foco em notícias e artigos científicos, pois estou ingressando no curso de Licenciatura em Pedagogia. Minha trajetória educacional é uma jornada de desafios e conquistas, marcada pelo amor pela aprendizagem e pela busca constante de crescimento pessoal e profissional.
Cada etapa da minha trajetória escolar contribuiu para moldar meu caráter e minhas aspirações. A jornada que começou em uma pequena escola rural me preparou para enfrentar desafios maiores e buscar novos horizontes no campo acadêmico e profissional.
SOBRE A AUTORA:
Ilvona Mendes Pereira, de Cristália/MG, é acadêmica da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM), onde cursa Pedagogia. Produziu este relato na disciplina Práticas de Leitura e Produção de Textos, ofertada de julho a novembro de 2024.
A orientação deste trabalho e a organização do e-book foram realizadas por Carlos Henrique Silva de Castro, Kátia Lepesqueur e Virgínia Batista.