Memórias de meus letramentos

Resido na comunidade Quilombola Paiol, localizada no município de Cristália-MG. Sou filha de mãe analfabeta e pai alfabetizado. Acredito que meu primeiro contato com os letramentos foi quando ouvia minha mãe contar histórias e causos sobre a comunidade, que me lembro até hoje. Também recordo diversas brincadeiras que tinham a ver com gêneros escritos, como amarelinha e quebra-pedra, entre outras. Aos 6 anos, tive meus primeiros contatos com a Escola Municipal da cidade de Cristália, que fica a nove quilômetros de distância da comunidade.

Naquela época, enfrentei muitos desafios para estudar, inclusive para pegar o transporte escolar, pois tinha que caminhar meia hora a pé, já que o ônibus não chegava até a porta da minha casa. Embora houvesse uma escola dentro da comunidade, minha mãe optou por me matricular na cidade, pois a escola da zona rural funcionava apenas pela manhã. Assim, não havia como eu ir todos os dias a pé, sozinha, até a escola, que ficava a 5 quilômetros de casa. Como meus irmãos estudavam na cidade, facilitava meu deslocamento, já que eles cuidavam de mim e ajudavam a levar meus materiais até o ponto de ônibus.

No ensino fundamental, passei por algumas dificuldades para aprender a ler, embora já tivesse uma boa coordenação motora, desenvolvida nas brincadeiras de ‘escrever’ no chão de terra batida com pedaços de madeira. Na escola, viajantes vendiam livrinhos de histórias de princesas, e meu sonho era adquirir aqueles livros com lindas imagens. Mesmo sem saber ler perfeitamente, eu podia olhar as imagens e, com o CD que acompanhava o kit, ouvir as histórias. Apesar das dificuldades financeiras, meus pais sempre compravam esses kits para mim. Quando eu os adquiri, já tinha uma imaginação de contos de fadas, e minha vontade de ler todos os parágrafos das histórias e interpretá-los era muito grande. Isso foi um dos incentivos para aprender a ler.

Ao longo dos anos, meu desejo pelos estudos foi aumentando, mas sempre tive dificuldade em matemática; as contas eram algo que complicava minha cabeça. Nos anos iniciais, aprendi a contar os primeiros números e depois a fazer operações de soma e subtração. Sempre levava moedas para comprar meu lanche, mas não sabia o valor de muitos números e tinha que perguntar aos funcionários o que poderia comprar. Isso me causava muita vergonha, pois eu queria saber o valor de cada moeda.

Minha família sempre influenciou na escola e no papel dos letramentos, inclusive nos conteúdos voltados à área da matemática. Os principais incentivos partiram do berço familiar, antes mesmo de me alfabetizar, sendo de certa forma influenciada pelo meio social em que vivia. Aos poucos, fui aprendendo a reconhecer o dinheiro e as horas.

Na escola que frequentei durante os anos iniciais, não havia uma biblioteca. Assim, quando precisávamos de algum material ou livro didático-pedagógico, tínhamos que nos deslocar até a Secretaria de Educação, que ficava a cerca de um quilômetro de distância da escola. A locomoção e a distância entre os dois locais dificultavam o acesso contínuo aos livros didáticos. Nos anos finais do ensino fundamental, já não tive mais problemas em relação à biblioteca e às leituras, uma vez que fui estudar na Escola Estadual. Naquele período, os docentes sempre nos incentivavam a realizar atividades articuladas aos livros. No entanto, enfrentei grande dificuldade com leitura crítica e interpretação de texto, e acredito que isso foi um dos resultados da falta de diversidade de leitura no início da alfabetização.

Ao iniciar os estudos na universidade, tive bastante dificuldade com diversos gêneros textuais, com a escrita e com a leitura engajada, entre outros. No entanto, ao longo do tempo, fui praticando e, assim, melhorando tanto na forma de escrever quanto na forma de expressar minhas opiniões sobre diversos temas. Atualmente, me identifico com a linguagem e temas e consigo acompanhar os conteúdos das unidades curriculares, pois são bem contextualizados com a realidade dos educandos.

Vale ressaltar o quanto os estudos, práticas e pesquisas desenvolvidas até aqui têm fortalecido meu processo formativo como educadora do campo. Pretendo enriquecer ainda mais meu conhecimento acadêmico e, assim, no futuro, ter a capacidade de articular conteúdos diversos à realidade dos meus alunos, proporcionando desenvolvimento tanto no processo de aprender quanto de ensinar.



SOBRE A AUTORA:

Amanda Pereira dos Santos é acadêmica da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM), na Licenciatura em Educação do Campo. Produziu este relato na disciplina Gêneros Textuais/Discursivos, ofertada de julho a novembro de 2024.

 

 

 

Este trabalho foi orientado pelo professor Carlos Henrique Silva de Castro e faz parte do livro Memórias de letramentos 5, que pode ser baixado gratuitamente. Clique na capa ao lado.

 

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