A Leitura Entre as Páginas da Minha Vida

Arlindo Rodrigues Araújo, Januária/MG

Sou mineiro de nascimento. Precisamente, nasci em Januária, no norte de Minas, numa comunidade chamada Grotinha. Vim ao mundo no dia de Nossa Senhora Aparecida e tenho a certeza de que esse detalhe foi uma proteção divina, pois, segundo relatos dos presentes durante o parto, nasci “morto”, já que não chorei e não me mexia. Minha mãe, já desesperada, resolveu seguir os conselhos da parteira, que sugeriu me colocar deitado e, por cima de mim, colocar uma bacia e começar a bater sem parar. Foi aí que ouviram o meu choro. Devo realmente ter me assustado!

A vida na comunidade onde nasci sempre foi muito difícil e o trabalho era árduo. Ajudava minha mãe e meu pai na roça e no serviço de casa: dar comida aos porcos, pisar arroz no pilão, buscar água no rio, pegar lenha, buscar buriti no brejo. Esses eram apenas alguns dos meus trabalhos diários como criança pequena. Você deve estar se perguntando se eu não brincava. Eu digo que sim, e muito! Nadava, corria, subia nas árvores e brincava com meus irmãos de boizinho de jatobá e de perna de pau.

Aos 7 anos ingressei na escola da comunidade, com incentivo dos meus pais. A professora do meu 1º ano de grupo escolar era minha prima, Maria, professora leiga e regente de turma de uma sala multisseriada. A escola funcionava na despensa da casa do Senhor Daniel. Me lembro que nos sentávamos nas esteiras e colocávamos os nossos cadernos nos bancos.

Nesse lugar, aconteceram meus primeiros contatos com as letras e os números. Apesar de não reconhecer sua grafia, já tinha o conhecimento de seus nomes e da sequência numérica. Recordo-me que contar até pelo menos 50 eu já sabia, pois usava esse conhecimento nas brincadeiras, como contar os boizinhos de jatobá no curral. Todos queríamos ser grandes criadores de gado. Na nossa brincadeira, já fazíamos algumas contas, pois vendíamos ou comprávamos bois e vacas uns dos outros. Então, tínhamos noção de somar e diminuir. Mas aprendi as operações mesmo no segundo ano de escola e, nessa época, já estava com 8 anos.

Sobre dinheiro, não tenho lembranças, pois, quando raramente aparecia, era nas mãos dos adultos. No meu caso, por exemplo: minha mãe, costureira, e meu pai, marceneiro, juntavam o pouco que recebiam pelos serviços prestados e iam à cidade uma vez por ano para comprar utensílios e mantimentos que não produzíamos na roça, como sal, querosene e peças de tecido.

A escola, apesar de precária, foi minha porta de acesso para aprender o que não sabia e aprimorar os saberes que já possuía. Como não era comum, naquela época, o acesso a livros, jornais, revistas e até mesmo a papéis com algum texto escrito, tudo o que aprendi, pouco ou muito, foi na escola.

As lições eram cópias da cartilha. Aliás, o único livro que havia na escola era esse, e ninguém podia se atrever a pegá-lo. Era de uso somente da professora, de onde eram retiradas as nossas lições. Conheci os gibis na escola quando a professora trouxe a grande novidade. Qualquer aluno que os estragasse recebia os temidos bolos com a palmatória.

Fui alfabetizado no sistema silábico B+A = BA e não me recordo de nenhuma aula com contação de histórias. A metodologia era repetir as famílias silábicas e copiá-las insistentemente. Sou grato por, mesmo diante de tanta dificuldade, ter concluído nesse grupo a terceira série.

Nessa fase, não tive contato com nenhum livro literário, nem com nenhum texto que tenha ficado guardado nas minhas recordações. O que posso descrever é que meus aprendizados não vieram, em sua maioria, de textos escritos e de autores desconhecidos. No meu mundinho, tive histórias e aprendizados passados através da oralidade. Com as instruções dos outros, aprendi com destreza a selar um cavalo, tirar leite de vaca, fazer queijo, plantar, cuidar e colher as roças, plantar hortas. Para tudo isso, recebi muito incentivo, mas havia a exigência de pais que viviam do que produziam, em uma casa com 8 filhos, enfrentando muitas dificuldades e com pouco conhecimento. Estudar era quase um luxo, e algumas famílias não permitiam que seus filhos frequentassem a escola, por não verem futuro nela. Para que decifrar letras e números, se onde morávamos todos viviam praticamente sem livros, e essas crianças precisavam aprender a lidar com a terra? Eu e meus irmãos sempre tivemos apoio de nossos pais, mas em muitos dias não tínhamos o que comer. Mesmo assim, eles nos mandavam para a escola. No caminho, colhíamos frutas e comíamos. Na escola já havia merenda naquela época, mas tínhamos que parar com a lição para buscar lenha para seu preparo.

Sempre achei que os estudos na minha comunidade eram bem fracos, mas a professora passava o pouco que sabia para podermos alçar voos maiores. Pelo menos o caminho que levava a esses voos era maior, mais longo e mais tortuoso. Quando terminamos a terceira série do ensino fundamental, fomos matriculados em um grupo maior, em outra comunidade, chamada Várzea Bonita, que ficava a 9 km de distância da minha casa. Eu e meus outros 7 irmãos, além de primos e colegas, andávamos 18 km por dia para darmos continuidade aos estudos. Levávamos na sacola a vontade de nos aprimorarmos mais na leitura e nas quatro operações.

Nesse grupo, tive como professora a Senhora Dalva. Busco na memória um momento de manuseio com livros, com contação ou leitura de uma história e… nada. Nenhuma lembrança me surge na cabeça. O que ouvíamos eram histórias contadas pelos mais velhos, os ditos causos. Muitas vezes, eram contadas para nos assustar, outras para nos dar exemplos, e muitas delas eram mesmo para nos ensinar sobre a lida do dia a dia.

Nenhuma das escolas em que estudei durante o primário tinha bibliotecas. Naquela época, não eram cobradas produções de texto, apenas tínhamos que produzir frases com palavras dadas. O acesso precário aos livros e outros meios de leitura e escrita me fez, e me faz, muita falta hoje, pois não adquiri o hábito da leitura. Depois de concluir a 4ª série, fui obrigado a desistir dos estudos, porque meus pais não tinham como nos manter na cidade.

Por volta dos 35 anos, me vi forçado a continuar os estudos, e fiz uso do CAED, programa do governo para que pessoas que não puderam frequentar a escola normal pudessem completar o ensino fundamental e médio por meio de provas. Como ficou claro, não tive incentivo à leitura, mas, quando me inscrevi no CAED, percebi a necessidade da leitura, dos números e das operações em minha vida. Adquiri autonomia para estudar para provas, buscava livros na escola onde minha esposa trabalhava como professora para os meus estudos.

Me forcei a ler e ficar inteirado das notícias do Brasil e do mundo, mas, ainda na minha vida adulta, não tinha lido nenhum livro sequer. Durante a realização dessas provas, li minhas primeiras obras literárias. Confesso que, buscando na memória, não me lembro sequer do nome de uma delas, mas tenho a sensação de ter gostado de uma que falava sobre um negro. Sinto falta de tudo que não aprendi, de tudo a que não tive acesso na minha vida escolar e, agora, na minha vida acadêmica, almejo provar sabores e saberes aos quais não fui apresentado.



SOBRE O AUTOR:

Arlindo Rodrigues Araújo, de Januária/MG, é acadêmico da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM) e produziu este relato na disciplina Práticas de Leitura e Produção de Textos, ofertada de julho a novembro de 2024.


A orientação deste trabalho e a organização do e-book foram realizadas pelo Professor  Carlos Henrique Silva de Castro e pelos Tutores Daniela da Conceição Andrade e Silva, Luís Felipe Pacheco e Patrícia Monteiro Costa.

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