O jardim dos sonhos perdidos

Michele

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Michele Santos Marques, Pedra Azul/MG

Desde os primeiros anos de vida, o acesso a textos escritos foi muito restrito para mim. Meus pais, humildes trabalhadores de uma pequena cidade, lutavam para garantir o básico para nossa família e mal tinham condições financeiras para adquirir livros ou materiais educativos. A casa onde vivíamos era pequena e envelhecida, e o ambiente não era ideal para o desenvolvimento de uma criança.

Lembro-me de ver minha mãe frequentemente folheando revistas antigas, buscando um pouco de distração e conforto. Essas revistas acabavam se tornando meus brinquedos improvisados. Eu usava as páginas rasgadas para inventar minhas próprias histórias, criando mundos onde a dura e sem cor realidade da minha vida não tinha vez. Era minha forma de escapar, mesmo que por um breve momento.

Quando comecei a frequentar a escola, estava ansiosa para aprender. No entanto, a escola também não tinha muitos recursos. Os livros didáticos eram antigos e a biblioteca, se é que se podia chamar assim, era uma sala pequena com poucas prateleiras. Os professores se esforçavam para compensar a falta de materiais, mas eu sentia que estava sempre atrás dos outros alunos que vinham de famílias mais abastadas. Entre os livros lidos nessa época estavam “Chapeuzinho Vermelho”, “Pinóquio” e “O Barquinho Amarelo”.

Aprender a escrever foi um desafio. As palavras pareciam dançar nas páginas dos cadernos surrados, e minhas tentativas de escrever eram frequentemente frustradas pela falta de apoio. No entanto, tentava com perseverança, escrevendo pequenos textos sobre meus sonhos e esperanças, que guardava com carinho.

Aprendi a contar com a ajuda de minha mãe. Usávamos pequenos objetos encontrados em casa para tornar o aprendizado mais visual. Eu sabia contar até dez, mas esse conhecimento era limitado, e a matemática na escola se tornou um desafio ainda maior. Cada problema matemático parecia um obstáculo insuperável, e eu frequentemente me sentia desmotivada ao ver outros alunos superando essas dificuldades com mais facilidade.

A situação financeira da minha família piorou com o tempo. Meu pai perdeu o emprego devido a problemas de saúde e, sem uma fonte de renda estável, enfrentamos dificuldades ainda maiores. Comecei a trabalhar meio período para ajudar, fazendo pequenos serviços e vendendo produtos que eu mesma fazia. Essa nova realidade significava menos tempo para estudar e mais estresse, o que me deixava exausta.

Em um inverno particularmente rigoroso, a situação chegou ao ponto crítico. Nossa casa ficou fria e úmida, e eu frequentemente passava as noites em claro tentando me manter aquecida com roupas empilhadas. A falta de alimentos se tornou uma realidade constante, e o sonho de um futuro melhor parecia cada vez mais distante. Meus cadernos de histórias, uma vez cheios de esperanças e sonhos, estavam agora cobertos de poeira e esquecidos em uma prateleira.

Apesar de tudo, nunca perdi completamente a paixão pela leitura e pela escrita. Cada livro emprestado da pequena biblioteca local era um pedaço do mundo que eu sempre desejei conhecer. Mesmo nos momentos mais difíceis, eu buscava consolo nas páginas desses livros, que se tornaram meu refúgio e uma forma de escape das adversidades.

Finalmente, após muitos anos de luta, a situação financeira da minha família se estabilizou um pouco. No entanto, o impacto emocional e psicológico das dificuldades anteriores era profundo. Agora, como adulta, tentava reconstruir minha vida, lidando com as cicatrizes deixadas pela pobreza e pelo esforço constante para sobreviver.

Mesmo que os sonhos de uma infância cheia de livros e aventuras literárias tenham sido substituídos por uma realidade de trabalho árduo e sobrevivência, a paixão pela leitura e pela escrita nunca me abandonou.

O jardim dos sonhos perdidos, como eu o chamo, é um símbolo da minha luta e resiliência. É uma lembrança constante de que, apesar das adversidades, nunca abandonei meus sonhos de aprender e crescer. A jornada foi difícil e marcada por muitas dificuldades, mas o desejo de continuar explorando o mundo através da leitura e da escrita sempre foi uma luz em meio à escuridão.



SOBRE A AUTORA:

Michele Santos Marques, de Pedra Azul/MG, é acadêmica da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM), onde cursa Pedagogia. Produziu este relato na disciplina Práticas de Leitura e Produção de Textos, ofertada de julho a novembro de 2024.


A orientação deste trabalho e a organização do e-book foram realizadas por Carlos Henrique Silva de Castro, Kátia Lepesqueur e Virgínia Batista.

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