Memórias de minha trajetória escolar

Memórias de minha trajetória escolar

Por Natania Ferreira da Silva [1]

Entre cinco e seis anos, tive a presença e o primeiro incentivo de minha mãe na minha vida escolar, já que ela teve acesso à escola e tinha o segundo grau completo. Ela me ajudou com os primeiros rabiscos até a entrada na escola. Sua presença foi muito importante em minha vida.

Ingressei na escola com sete anos, já conhecendo algumas palavras. No início do Ensino Fundamental I, estudei em uma escolinha pequena que havia na minha comunidade. O Ensino Médio foi cursado em outra escola, na cidade Ouro Verde de Minas, período em que tive as dificuldades com o transporte, pois, com a falta de ônibus, perdia aulas e ficava um pouco prejudicada nas disciplinas.

Nas outras séries do Ensino Fundamental I, encontrei apoio da professora Vilma, que me ajudou muito. Como disse, em casa, tinha incentivo desde que era criança: minha mãe, Ivani, me ensinou as primeiras letras, e com sete anos, eu conhecia algumas palavras. Por exemplo, já conhecia o alfabeto e as vogais, já tinha contato com os números, mas só comecei a praticar a leitura na escola.

Desde o Ensino Fundamental, tínhamos os livros didáticos para estudar em casa, entretanto, era muito difícil ter acesso a livros literários. A partir do Ensino Fundamental II, tive acesso à biblioteca da escola, que disponibilizava os livros aos alunos. Entretanto, não tínhamos muito interesse pela leitura e muito menos incentivo dos professores para fazê-la, por isso, não li esses livros. Em muitos casos, os alunos pegavam os livros, levavam para casa e não os devolviam. Por isso, muitas vezes, faltavam livros na biblioteca.

Lembro-me que os professores nos mandavam à biblioteca só para assistirmos algum filme e, assim, elaborar um resumo ou atividade sobre ele. Na maioria das vezes, quando algum professor faltava, colocavam-nos para assistir filmes, sem objetivos pedagógicos claros. Isto era ruim, pois perdíamos muitos conteúdos, sobretudo no início do Ensino Médio. 

Depois do Ensino Fundamental II, minha mãe quis que eu estudasse no período matutino, das 7h às 11h 25 min. Recordo-me de ter aulas aos sábados, porque algum professor havia faltado ou feito greve, requerendo aumento de salário. Sempre me saí bem em todas as disciplinas, mas, ao chegar ao final do terceiro ano do Ensino Médio, tive dificuldades com a disciplina de inglês. De fato, acho que não me adaptei a ela.

No final do Ensino Médio, eu não pensava em continuar os estudos, só pensava em conseguir um emprego, mas na minha cidade não há muitas opções de trabalho. Este é um dos motivos que me levou a ingressar na faculdade. Minha mãe, novamente, incentivou-me a ingressar na universidade, pois ela já havia feito o curso de Licenciatura em Educação do Campo, em Viçosa, Minas Gerais. Foi ela quem me deu todo apoio quando prestei o vestibular para a faculdade, em Diamantina.

Em 2018, ingressei na Licenciatura em Educação do Campo (LEC-UFVJM), e, hoje, estou no terceiro período do curso, com outra visão sobre Educação, outro olhar para os estudos. Apesar de ter tido pouco acesso à leitura, agora tenho penso diferente, pois percebo que a leitura é bem gratificante. Percebo que do início de meus estudos até hoje, as coisas mudaram, tenho mais afinidade com a leitura. Tenho necessidade de aprender, de construir algo novo. Entendo que vale a pena continuar, prosseguir rumo ao final deste processo de aprendizagem, mesmo sabendo que não é fácil. Pensar que seria uma educadora do campo é sempre muito gratificante.

[1] Este texto é parte do ebook Memórias de Letramentos II: Outras Vozes do Campo, disponível para download gratuito aqui: auladigital.net.br/ebooks.

Minha trajetória de letramento

Minha trajetória de letramento

Por Joice Rocha Da Cruz [1]

Quando comecei a estudar, morava na cidade de Cristália, Minas Gerais. Com sete anos, mudei-me para a comunidade quilombola do Paiol, onde moro ainda hoje. Na minha casa só havia CD de histórias, pois minha mãe não gostava de comprar livros. Quando nos mudamos para a roça, só tínhamos livros de matéria escolar, por isso, eu não lia: achava tudo muito chato. Comecei a estudar com quatro anos em uma creche que permanece no mesmo lugar, pois meus pais, naquela época, moravam na cidade. No primeiro ano na creche, não líamos livros. As atividades desenvolvidas eram de desenho e a maioria das crianças só dormia.

Minha professora, Dora, gostava de contar história infantil e cantar músicas com cinco anos, aprendi a escrever meu nome e o alfabeto, mas, quando comecei a estudar na primeira série, tive muitas dificuldades em função de não ter livros para ler. Minha professora escrevia mais no quadro e dava desenhos para colorir. Ela gostava muito de mim e meu desempenho estava crescendo. Ao chegar ao fim do ano, meu desenvolvimento diminuiu, pois eu estava mais adiantada que os colegas ingressantes daquele ano. 

Quando eu estava na segunda série, montaram uma biblioteca na escola e começaram a “tomar” a leitura dos alunos e ditados de palavras. Essas práticas me trouxeram dificuldades, portanto comecei a decorar os textos e, assim, não conseguia desenvolver a leitura autônoma. Acabei sofrendo muito, porque meus colegas me chamavam de “besta” dentro da escola. Eu conseguia responder às questões que a professora passava e sempre fui uma das primeiras a terminar as atividades. Já na terceira série, a professora começou a nos levar à biblioteca, porém não podíamos mexer nos livros novos, só nos antigos. Continuaram a “tomar” a leitura, e descobriram que, em vez de aprender, eu estava decorando. A professora pediu à minha mãe que eu repetisse a série, e minha mãe concordou. Eu não concordei com a ideia e falei que eu iria parar de estudar, pois ia ser a maior vergonha da minha vida.

Ao conversar com uma antiga professora, ela falou sobre o meu desenvolvimento em sala de aula e minha mãe revolveu não concordar com a ideia de me reprovar: assim, passei de ano. Vencendo esse obstáculo, fui me dedicando cada dia mais à leitura. Quando cheguei à quarta série, tive uma ótima professora que me ensinou a ler. Quando eu tinha que ler um texto, ela me escolhia para me ajudar a superar o medo e as dificuldades. Eu gostava de ler histórias infantis, como a “Chapeuzinho vermelho”. No sexto ano, eu tinha aula de literatura junto com português, estudava as fábulas, e o professor nos colocava para interpretar tais textos.  Apesar de ter biblioteca na escola, os que moravam na roça não podiam levar livros para casa, pois eles tinham medo de que eles fossem danificados.  Quando os professores resolviam passar atividades de leitura, como resumo, eu pegava parte do livro.

Durante o Ensino Fundamental II, percebi que os professores passavam no quadro só questões sobre gêneros textuais, verbos ou cópias dos livros. Já no Ensino Médio, tive muitas atividades de produção de texto que visavam uma preparação para o Enem. Minha escrita e meu modo de pensar melhoraram, pois percebi que até mesmo em matemática era necessário saber interpretar textos. Nas aulas de português, aprendi a interpretar imagens e a fazer textos sobre elas.

Contei sempre com a ajuda da minha família, que não teve a mesma oportunidade que eu, em função das dificuldades pelas quais passaram. Minha mãe começou a trabalhar em “casa de família” com 12 anos e não pode terminar nem mesmo a quarta série. Meu pai andava mais de cinco quilômetros por dia para chegar à escola, mas aprendeu a ler e a escrever: foi ele que me ensinou a escrever meu nome. Portanto, ao longo da minha trajetória escolar, o processo de letramento foi falho, sobretudo pela falta de incentivo à leitura de textos diversificados. Hoje, na Licenciatura em Educação no Campo, na disciplina Estudos de Letramento, percebo a importância do incentivo à leitura e às reflexões sobre os textos lidos.

[1] Este texto é parte do ebook Memórias de Letramentos II: Outras Vozes do Campo, disponível para download gratuito aqui: auladigital.net.br/ebooks.

Construindo o meu ‘‘eu’’ e entendendo o mundo

Construindo o meu ‘‘eu’’ e entendendo o mundo

Por Isaura dos Santos Lopes [1]

Tenho dezenove anos, nasci e vivo ainda hoje na Comunidade Quilombola do Suaçuí, zona rural do município de Coluna, Minas Gerais. Sou filha de Seu João Cardoso e de Dona Lozinha: ele é conhecido por suas histórias e causos, e ela pela sua determinação, pela quantidade de filhos que teve e pelo modo de trazê-los ao mundo. Eu, assim como meus irmãos, nasci em casa mesmo, em função das habilidades de minha mãe, que era parteira. Sou a última dos oito filhos a nascer na propriedade de meu pai, que ficava no extremo da comunidade. Após meu nascimento, minha família se mudou para a propriedade de minha mãe, mais ao centro da comunidade e próxima de onde hoje estão a igreja e a escola.

Lembro-me, com certa ternura, que antes de iniciar o pré-escolar já sabia juntar as letras e a formar palavras. Isso se deve à ajuda de minhas duas irmãs mais velhas, que sempre me ajudavam. Também já conhecia alguns números, as cores e amava desenhar.  Desde pequena, com cerca de três anos, já brincava de escolinha com minhas irmãs e amigos, mas apenas quando eles tinham tempo, pois a lida da roça era dura. Era um momento mágico para mim, pois, naquele momento, estava realizando, mesmo que no universo do ‘‘faz de conta’’, o adorado sonho de ir à escola. Esses momentos não tiraram de mim o desejo de frequentar regularmente a escola.

Meus pais, ambos lavradores e semianalfabetos, mesmo cientes que eu já sabia ler e escrever, não dispensaram a necessidade de que eu e meus sete irmãos fôssemos à escola. Minha mãe sabia apenas escrever seu nome, mas sempre foi curiosa e nos pedia para que lêssemos para ela os bilhetes que a escola mandava, a bíblia e até nossos ‘‘para casas’’. Ela sempre nos incentivou a estudar e não apenas na escola. Seu maior desejo era se alfabetizar, tanto que, mesmo depois dos cinquenta anos de idade, ela se matriculou no programa Educação de Jovens e Adultos (EJA), e sempre destacava a importância de saber ler e escrever. Sua postura sempre me fomentou minha vontade de frequentar a escola.

Na minha infância foi marcada pela leitura e por um gosto especial pelas narrativas, o qual sofreu influência das narrativas das vivências, viagens e experiências em outros estados brasileiros e até fora do país de meu pai. O que eu mais gostava, dos poucos momentos que desfrutávamos juntos, eram suas narrativas sobre o “Sr. Coelho e a Dona Onça”. Eram histórias que eu ouvia sempre na hora de dormir, pois não tínhamos, em casa, acesso a mídias, como a televisão, por exemplo. Quando não nos deliciávamos com as histórias que meu amado pai trazia, ouvíamos os seus discos, alguns com histórias também, como o “Buc Sarampo”, o mais ouvido por nós.  Achava tão legal ouvir histórias, que as passei a contá-las para meus sobrinhos e outras crianças com quem tive contato quando mais velha.

Meu pai, pelo exercício da construção civil, além de bom contador de histórias, era excelente matemático, era rápido nos cálculos mentais e, além de resolvê-los, exemplificava-os de maneira simples. Talvez por isso, eu me identificasse também com os cálculos, que eram, e continuam sendo, uma de minhas grades paixões, juntamente com a leitura de poesia e de contos. Por isto, sempre me dedicava às provas da OMBEP, com gosto e desejo de passar para a próxima fase. De fato, passei algumas vezes. O contato com livros do acervo da biblioteca da escola Estadual Padre João Clarimundo, em que cursei o Fundamental II e o Ensino Médio, era, na maioria das vezes, com textos infantis, alguns para coleta de dados e para o treinamento de referências bibliográficas.  Mas o contato com o acervo da biblioteca municipal em que minha madrinha de batismo trabalhava, e com quem eu passava bastante tempo, sobretudo para fazer as reuniões de trabalhos em grupo, mas também nos dias de visitá-la, propiciou-me o acesso a diversos autores e temas.  Isto me levou a ler cada vez mais e melhor. Também me inspirei nesses textos para criar poemas e contos, nos quais registrei/ representei fatos marcantes de minha existência. Desses, gostei mais do que fiz, juntamente com uma de minhas irmãs, para uma brincadeira de confraternização. O conto recebeu o nome ‘‘O pereroi do brejo’’: contava a história de um de meus irmãos, quando ele e minha mãe chegaram de Belo Horizonte, aonde iam regularmente por causa de um problema crônico de saúde dele. A situação virou, naquele momento, uma brincadeira e foi contada como história de ninar para os filhos de minha irmã.

Tive a oportunidade de acompanhar duas edições do programa Cidadão Nota 10, que visava alfabetizar jovens e adultos, em aulas noturnas ministradas por voluntários. O projeto contemplou minha comunidade quando, possibilitando que meus pais frequentassem as aulas. Eu sempre ia junto com eles, e pude ter contato com um ensino diferente do que eu recebia na minha escola. Minha irmã foi uma das voluntárias, e eu a ajudava a corrigir exercícios e a orientar os alunos.  

No último ano do Ensino Médio, conheci a Licenciatura em Educação do Campo (LEC) da UFVJM, e, pensando no que aprendi na infância e adolescência, curiosa e ansiosa por questionar e descobrir as respostas do mundo, lancei-me nessa experiência, que até o momento tem sido enriquecedora. Na LEC, comecei a ler textos científicos e a ter contato com um vocabulário mais vasto e difícil que, entretanto, não me impedem, de ler meus amados poemas, contos e romances. Sempre trago para o Tempo Universidade livros de meu conterrâneo, Carlos Herculano Lopes, escritor com quem tive o prazer de me encontrar quando criança em um evento de incentivo à leitura em minha comunidade, e, em outra vez, na escola estadual em que estudei, em um evento de recital de poesias.

Por tudo isto, sou hoje uma pessoa que ama leitura, mas que não se isola nela, pelo contrário, busco sempre algo mais, busco dar sentido à vida e entender o mundo, aprendendo coisas novas, mas sem perder minhas origens.

[1] Este texto é parte do ebook Memórias de Letramentos II: Outras Vozes do Campo, disponível para download gratuito aqui: auladigital.net.br/ebooks.

Os desafios do aprender

Os desafios do aprender

Por Irene dos Santos Lopes [1]

Apresento aqui um pouco da minha história de vida. Eu nasci e cresci na comunidade quilombola de Suaçuí, zona rural da cidade de Coluna, no vale do Rio Doce, leste de Minas Gerais. A minha família trabalhava com plantação de milho, feijão, mandioca etc. Desde os três anos de idade já tinha uma enxadinha para as tarefas da roça. Não tive contato com leitura e escrita em casa. Aprendi minhas primeiras letras na escola, e foi bastante difícil, pois demorava a entender as letras. Lia e escrevia apenas na escola, pois em casa não tinha tempo: meus pais precisavam da minha ajuda. Eram muito rígidos, e eu tinha que fazer tarefas de casa e da roça, mas tinha incentivo deles na escola também.

Não escrevia letras, mas fazia alguns rabiscos. A escola foi uma das motivadoras na minha iniciação escolar. A comunicação era mais difícil, mas ouvia alguns poemas infantis, recitados por meus irmãos mais velhos.

Entrei na escola aos sete anos, mas não tinha horário fixo para as aulas. As professoras vinham da cidade que ficava a uns vinte quilômetros da comunidade. Não havia energia elétrica, nem transportes e, algumas vezes, não tinha merenda. Na escola não existia biblioteca, e os livros didáticos eram poucos e não podiam ser levados para casa. A escola criou o cantinho de leitura, com livros compartilhados de outra escola do município. Na sala de aula tínhamos que compartilhar os livros com os demais colegas. O livro que eu mais gostei foi o que contava a história da “Menina bonita do laço de fita”. Quando mudei da escola municipal para a estadual, fora do município, encontrei uma biblioteca, mas eu não lia muito, porque chegava da escola e tinha muitos afazeres domésticos e alguns deveres escolares para fazer à noite, à luz de lamparina. Gostava de livros de poesia, entretanto não pegava livros com medo de sujá-los ou sumi-los. Apenas fazia algumas leituras quando a professora mandava.

Conclui o Ensino Médio e continuei na comunidade, ajudando meus pais a cuidar dos irmãozinhos menores e com a lida da roça. Dez anos depois, através da ajuda do meu irmão, que já tem mais contato e facilidade com o mundo tecnológico, soube do curso de Licenciatura em Educação do Campo. Ele nos inscreveu no vestibular. Eu consegui passar na segunda tentativa, e aqui estou no terceiro período. Enfrento muitas dificuldades, tanto para acessar as ferramentas, como computador, plataformas digitais que necessitamos, quanto para dar conta das leituras dos textos científicos. A partir do contato com os textos e das explicações dos docentes do curso, estou aprendendo a ter outras perspectivas: a leitura crítica faz diferença, principalmente, para entender o meio onde vivo, as notícias, as leis e tudo que faz diferença em nossas vidas, principalmente, o debate político e histórico em que se inserem nossas histórias culturais e lutas.

[1] Este texto é parte do ebook Memórias de Letramentos II: Outras Vozes do Campo, disponível para download gratuito aqui: auladigital.net.br/ebooks.