Quilombo de Vargem do Inhaí

Projeto FAPEMIG em acordo com edital 009/2022: Educação do campo: saberes e práticas de formação nas relações discursivas entre trabalho, educação, letramentos e agroecologia

Prática de Ensino da Licenciatura em Educação do Campo (LEC)/UFVJM

Daniela de Jesus Nascimento
Edmilson Oliveira Silva
Fernanda Aparecida dos Santos
Izaias Junior Cruz Vales
Ronilda do Nascimento dos Santos
Solidade da Conceição Figueira
Sunamita Nelma Ferreira Alves
Carlos Henrique Silva de Castro

As Práticas de Ensino, que são unidades curriculares, da Licenciatura em Educação do Campo,  como pode ser consultado no Programa Pedagógico do Curso, acontecem todos os semestres, nas comunidades dos próprios estudantes. Os encontros se dão em pelo menos 10 núcleos diferentes, a depender da quantidade de acadêmicos matriculados. No período correspondente ao segundo semestre de 2022, já em 2023, o núcleo de Diamantina/MG, com o intuito de refletir sobre como integrar na escola os saberes e fazeres tradicionais, ancestrais e populares, visitou Vargem do Inhaí, comunidade quilombola localizada em Diamantina, Minas Gerais, no distrito de Inhaí.

Uma vez planejada a visita e as atividades, no dia 13 de maio de 2023 partimos para a planejada visita, com os horários bem definidos e já sabendo que seria um dia de correria, mas de muita aprendizagem. Adiantamos que a visita à comunidade de ,  proporciona uma experiência única de encontro com mestres e mestras detentores de saberes e fazeres ancestrais, de culturas campesinas ligadas ao trato e proteção da terra onde vivem, semeiam e colhem. 

Naquele ambiente enraizado na tradição, onde vive um de nossos estudantes-autores, que tão bem nos recebeu, foi possível adentrar em um universo de conhecimentos construídos e transmitidos por gerações, em diálogo com as técnicas e tecnologias de seu tempo, como enfatizado pelo mestre Imir, também conhecido por Irani, quando fala com orgulho de do intercâmbio de experiências, técnicas, sementes com outros mestres e mestras Brasil afora. 

Na comunidade, preservam técnicas artesanais, práticas agrícolas sustentáveis e manifestações culturais profundamente enraizadas na história local. A próxima seção é dedicada a contar um pouco do que aprendemos, do que vimos e nos foi contado, pelos mestres e mestras que nos receberam e acompanharam ao longo de todo o dia. Ao nos dispormos a ouvir os mestres e mestras e a explorar a comunidade, mergulhamos em um rico legado de sabedoria construído em prol do planeta, de modo a preservar e compartilhar tradições valiosas, essenciais para a preservação e a compreensão da terra e da identidade cultural local, pedacinho desse fractal cultural que forma o país.

Nossos mestres e mestras e seus saberes tradicionais

Chegamos à comunidade às 10 da manhã, quando fomos recebidos com um delicioso e farto café com biscoito, pães e frutas. A programação da manhã contava com um encontro com as Pastorinhas, o Grupo de Folia de Reis e, ainda, com uma artesã local, a Raiane.

Inicialmente, fomos apresentados ao Grupo das Pastorinhas, com as mestras Lúcia e Ilma, duas senhoras que comandam o grupo há mais de 37 anos. Composto por cerca de 15 mulheres e crianças, o grupo leva alegria e fé por onde passa, resistindo às dificuldades, principalmente pela falta de novos integrantes e recursos. Ancoradas na fé cristã, a dedicação do grupo, que segue cantando após o Natal até o dia de Reis, transcende a simples evangelização; trata-se da preservação de uma tradição, com todo seu conhecimento ancestral e seu valor para a socialização na comunidade.

Em seguida, encontramos o Grupo da Folia de Reis, liderado pelos mestres Geraldo, seus filhos Tiago e Sebastião. Ao todo, são 15 homens que, com mais de 100 anos de existência na comunidade, celebram, com músicas e danças, o nascimento do menino Jesus, do Natal até o dia de Reis. Para isso, saem de suas casas para anunciar a chegada do menino Jesus. Durante cerca de 12 dias, percorrem as casas da comunidade em uma caminhada, levando consigo a Bandeira que representa o Divino Espírito Santo. Durante a caminhada, os foliões mantêm-se em silêncio, mas ao chegar às portas das casas, começam a cantar e dançar seus versos, anunciando sua chegada e buscando o “pouso da bandeira” e dos foliões. Esse momento de recepção é marcado por danças e rimas, em diálogo com temas que vão sendo solicitados pelos donos da casa. Durante a festa, há crenças e normas que os celebrantes seguem, como evitar cruzar o mesmo caminho com a bandeira, pois acredita-se que isso resultaria na ausência (falecimento, mas esta palavra não foi usada) de um folião na próxima celebração. Os instrumentos utilizados durante a Folia são violão, pandeiro e sanfona. Também gostam de usar uniformes e suas camisas são geralmente doadas pela secretaria de cultura de Diamantina. A Folia de Reis é uma forma de rememorar o envio dos Reis Magos e anunciar o nascimento de Jesus, demonstrando a fé e a devoção da comunidade.

Ao conhecer os mestres e ouvir suas histórias, compreendemos as motivações por trás da preservação dessa manifestação cultural centenária. Além de celebrar o nascimento de Jesus, essa tradição fortalece os laços da comunidade e conecta seus membros às suas raízes históricas, preservando saberes e tecnologias antigas. Tivemos o prazer de ouvir esses mestres e mestras, que são fundamentais para manter viva essa tradição. Na parte da tarde, ao encontrarmos o mestre Imir, pudemos perceber as conexões entre os grupos das Pastorinhas e da Folia de Reis com as culturas do plantio e da preservação da terra.

Ao fim da manhã, Raiane, que é artesã e uma das mais jovens pastorinhas, nos apresentou alguns produtos e histórias do grupo de artesanato local, que trazem um tanto da agricultura familiar e da apanhado de flores, tarefas a que também se dedica. Nas peças, em tecido de algodão branco, que viram bolsas, na maioria das vezes, bordam com linhas coloridas  o que seus olhos veem, retratos de suas culturas, em desenhos singelos com a família, um amor, uma paisagem; tudo com os detalhes da localidade, que desvelam um pouco de suas práticas e bastante de suas culturas. O grupo é recente e, com apenas 5 anos de existência e 10 integrantes, surgiu como uma tentativa de suprir o tempo ocioso e gerar renda às mulheres da comunidade. Raiane trouxe, em suas humildes palavras e seus desenhos, um testemunho do poder de preservação cultural por meio do artesanato. O almoço, como não podia deixar de ser, contou com arroz, feijão, legumes e hortaliças produzidos no quilombo, além do frango caipira.

Na parte da tarde, fomos levados a uma trilha do conhecimento agroecológico, conduzidos pelo mestre Imir, nosso anfitrião. Ao conhecermos o mestre, guardião de sementes crioulas e agricultor experiente, compreendemos o imenso valor dos saberes ancestrais para a agroecologia. Suas técnicas transmitidas por gerações e os equipamentos produzidos por sua família evidenciam sua conexão íntima com a terra e o meio ambiente. A diversidade de sua produção agrícola reflete não apenas sua habilidade como agricultor, mas também a importância de cultivar de maneira sustentável e respeitosa, em harmonia com a natureza. 

Primeiramente passamos pela casa de sementes, onde aprendemos como guardá-las, e nos foram apresentadas muitas variedades e quantidades de sementes crioulas como arroz, feijão preto, roxo, carioca, além de milho preto, pipoca, coroa de frade, abóbora, andu, entre outras. Mestre Imir nos mostrou como funcionavam as sementes e seus ciclos. Devem ser sempre plantadas na lua minguante para que não desenvolvam carunchos, e é importante armazená-las de maneira adequada, em garrafas PET.  Entendemos que era importante trocá-las, a fim de espalhar diversidades de culturas onde a monocultura aniquilou várias espécies, e também guardá-las para a próxima temporada. Mestre Imir se orgulha de suas sementes sem nenhum produto químico. A estudante Ronilda, também autora deste relato, diz em seu depoimento que “ao trocar as sementes, não apenas trocávamos experiências e aprendizados sobre cultivo, mas também cultivávamos o amor em conjunto”.

Ao lado da casa de sementes, já podíamos ver os equipamentos para a torra da farinha, que o mestre Imir nos mostrou em detalhes. Tudo fica em um rancho, debaixo de um teto chamado pindoba, feito de palha de uma espécie de palmeira. Mestre Imir prefere que o rancho seja coberto assim, pois, devido ao calor dos fornos, a palha ajuda a conservar o ambiente fresco, mesmo sob o sol escaldante. Ficou evidente o cuidado e o conhecimento tradicional empregados na construção do rancho e de tudo que ali estava. A casa de farinha era totalmente artesanal, uma verdadeira relíquia de uma tecnologia antiga. Sentimos uma imensa gratidão ao senhor Imir por compartilhar conosco esses saberes tradicionais aprendidos de seus antepassados. Era emocionante presenciar a preservação dessas práticas históricas e a valorização de suas raízes culturais.

No canto do rancho, nos deparamos com dois fornos,  construídos por ele, seus filhos e esposa, com técnicas ancestrais, tais como os materiais utilizados. Os fornos são feitos de barro e pedra, bem plana, tal como uma mesa, pois é o lugar onde a massa da mandioca é colocada, previamente ralada em outro equipamento chamado desintegrador. O filho, Izaías, um destes autores, destaca o fato de outras casas de farinha estarem utilizando pedras industriais, mas que o sabor da farinha se altera.  Ficamos impressionados ao ver o rodo, parecido com uma enxada, sendo utilizado para mexer a massa. Ao lado, nos mostram duas prensas, herança dos avós. Servem para, por meio de pressão, obviamente, escoar a água da massa antes de ser colocada no forno.

Além de fazer farinha com a mandioca colhida no quintal, explicam que têm o costume de compartilhar o equipamento, e produzirem farinha em colaboração com vizinhos. A prática colaborativa envolve algum vizinho com uma grande quantidade de mandioca, mas sem os equipamentos e as técnicas. Com a farinha pronta, as sacas são partilhadas entre os envolvidos. O excedente é vendido. Certamente essa tradição secular colabora para fortalecer laços, compartilhar culturas e saberes, evitar desperdício de comida e recursos e, não menos importante, para a economia local.

Após a visita à casa de farinha, vamos passear pela vegetação, em busca do pousio, e vislumbrando cada folha, fruta, inseto. O pousio é uma técnica ancestral de grande relevância para os agricultores. De acordo com o mestre Imir, é possível identificar o cansaço da terra por meio do desenvolvimento das plantas, observando-se uma diminuição na produção e um aumento de pragas daninhas. Normalmente, após um período de 3 a 5 anos de plantio no mesmo local, a terra precisa de uma recomposição de nutrientes, explica Mestre Imir, que age de acordo com os ensinamentos da agroecologia, que defende que seja natural, em defesa do equilíbrio ambiental e da sustentabilidade. Então, em seu terreno, mestre Imir, ao identificar uma terra com poucos nutrientes, reserva essa área para um descanso, o pousio, que dura de 3 a 5 anos. Durante esse período, a vegetação se regenera, contribuindo para a reposição de alguns nutrientes essenciais. Quando chega o momento de retomar o cultivo, a terra é preparada para a agricultura novamente: as árvores e toda a vegetação que cresceram durante o repouso são cortadas e deixadas secar antes de serem queimadas. As cinzas resultantes são espalhadas sobre o solo. É importante ressaltar que o mestre enfatizou que não é viável realizar queimadas frequentes, pois isso enfraquece o solo, acabando com os nutrientes que foram recuperados. A prática do pousio é fundamental, especialmente para as comunidades tradicionais que adotam o cultivo orgânico ou agroecológico. Seu objetivo é promover a recuperação natural do solo, sem a necessidade de fertilizantes, adubos químicos ou agrotóxicos, melhorando sua condição e incorporando mais matéria orgânica, o que resulta em uma adubação natural.

Enquanto uma área descansa, seguindo esse procedimento, outra parte da roça é utilizada, permitindo uma rotação de culturas. Observamos que a prática do pousio é uma maneira sustentável de manejar a terra, respeitando seus ciclos naturais e garantindo a produtividade a longo prazo, além de contribuir para a preservação do meio ambiente. E o papel do mestre e seus conhecimentos ancestrais é essencial para que tudo isso aconteça e continue a acreditar na salvação do planeta.

Fontes/Referências:

Sobre Mestres e Mestras tradicionais: https://periodicos.ufmg.br/index.php/revistadaufmg/article/view/29103

Sobre Agroecologia e conhecimento tradicional, no verbete “POVOS E COMUNIDADES TRADICIONAIS” (p. 603 – 605): https://www.epsjv.fiocruz.br/sites/default/files/dicionario_agroecologia_nov.pdf 

 

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